Django Livre X KKK

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Django Unchained ou Django Livre é um filme de faroeste e drama, escrito e dirigido por Quentin Tarantino. Estrelado por Jamie FoxxLeonardo DiCaprioChristoph Waltz e Samuel L. Jackson, esse é o 7° filme de Quentin Tarantino. Recebeu cinco indicações ao Oscar, nas categorias de Melhor FilmeMelhor Ator Coadjuvante (Christoph Waltz), Melhor Roteiro OriginalMelhor Edição de Som e Melhor Fotografia. O titulo do filme originalmente seria The Angel, the Bad and the Wise para homenagear o cineasta Sergio Leone, porém Tarantino resolveu mudar o nome para Django Unchained baseado no filme italiano de 1966, Django, estrelado pelo ator Franco Nero, que faz uma participação no filme de Tarantino.

Todas informações factuais sobre o filme Django Livre você encontra clicando neste link. O que você não encontra é a reação preconceituosa de Spike Lee (“Faça a coisa certa“), em entrevista ao site da revista “Vibe“, contou que se recusa a assistir ao “Django Livre“, alegando que o novo filme de Quentin Tarantino é “desrespeitoso aos seus ancestrais“. É tipo comum de preconceito: “não vi e não gostei“…

“Eu não posso falar sobre isso [o filme] porque eu não vou vê-lo. Tudo o que eu vou dizer é que é desrespeitoso aos meus antepassados. Isso sou eu. Eu não estou falando em nome de ninguém”, afirmou Lee.

O cineasta também escreveu em seu Twitter sobre o filme. “A escravidão nos Estados Unidos não foi um western spaghetti de Sergio Leone. Foi um holocausto. Meus ancestrais foram escravos, roubados da África. Eu os honrarei”, disse.

Estranhamente, parece-me que o filme de Quentin Tarantino faz mais pelo combate ao racismo nos EUA do que todos os filmes de Spike Lee já fizeram. Por que? Porque ele sabe usar a arma da arte massiva: a violência debochada. Ironiza corrosivamente os racistas, assim como nos tinha colocado destruindo a imagem do mal nazista em seu filme anterior, “Bastardos Inglórios“.

Estilizar é dar estilo ou forma estética diferente à história descritiva, no caso, do racismo sulista antes da Guerra Civil nos EUA (1860-1865) – o filme se inicia em 1858. Tarantino representa o combate aos racistas por meio de símbolos do western spaghetti, homenageando não só esse gênero apropriado por diretores italianos, mas também resgatando a imagem do “alemão”, tão depreciada em seu filme anterior. Neste último, um dos “mocinhos” é o extraordinário ator austríaco Christoph Waltz, que tinha sido o oficial nazista em “Bastardos Inglórios”, dessa vez interpretando um culto e cínico alemão “caçador de recompensas”. Ele faz, então, o papel de um investidor “em nome da lei”. Mostra a privatização da segurança pública, quando o Estado estava ausente no território selvagem, onde ainda predominava “a lei do mais forte”. É mais ou menos como hoje, quando governos neoliberais privatizam o sistema penitenciário para a “livre-iniciativa” obter lucro com os presidiários.

Tarantino com grande humor e ironia, dá novos traços estilísticos ao faroeste. Ele se aprimora, requinta-se cada vez mais. Parece-me que ele descobriu sua marca de elaboração de Cinema de Autor. Já aparece na tela explodindo-se!

Quem não entender de alegoria ou, de modo pré-conceituoso, como Spike Lee, “não vê e não gosta“, realmente não vai achar graça no filme. Alegoria é modo de expressão ou interpretação no âmbito artístico e intelectual, que consiste em representar pensamentos, idéias, qualidades sob forma figurada e em que cada elemento funciona como disfarce dos elementos da idéia representada. Foi o método de interpretação aplicado por pensadores gregos (pré-socráticos, estoicos, etc.) aos textos homéricos, por meio do qual se pretendia descobrir idéias ou concepções filosóficas embutidas figurativamente nas narrativas mitológicas. Da mesma forma, foi método de interpretação das Sagradas Escrituras usado por teólogos cristãos antigos e medievais, em que se almejava a descoberta de significações morais, doutrinárias, normativas, etc., ocultas sob o texto literal.

Se até mesmo um texto filosófico é possível ser escrito de maneira simbólica, utilizando-se de imagens e narrativas com intuito de apresentar tropologicamente ideias e concepções intelectuais, por que não fazer um filme divertido, embora ultra-violento, para as “massas ignaras”?! Por meio de suas formas, ele representa uma idéia abstrata de combate aos racistas, matando-os de maneira estilizada! Cada uma das figuras ou ornamentações usadas no filme, conduzidas pelos próprios protagonistas, ilustram o enredo de uma maneira acessível ao grande público, como fossem alegorias de uma escola de samba.

É importante captar o simbolismo que abrange o conjunto da obra. Trata-se de um processo em que o acordo entre os elementos do plano concreto e aqueles do plano abstrato se dá passo a passo. Esta obra artística se utiliza, brilhantemente, dos recursos da figuração ou simbolismo alegórico. São sequências logicamente ordenadas de metáforas que exprimem idéias diferentes das enunciadas comumente: o politicamente correto, o herói do western.

O filme de ação ou aventura é sobre o heróiDjango, um ex-escravo livre, um homem liberto – e sua capacidade de superar os obstáculos formidáveis trazidos por acontecimentos externos alheios à sua vontade. Ele nos fala, i.é, fala ao nosso herói interior, despertando nossos recursos pessoais de coragem, resistência, abnegação, engenho, justamente, para enfrentar os racistas. O herói não precisa de palavras para nos empolgar: seus atos, decisões e reações frente a todos os obstáculos que aterrorizam a nós, na platéia, de enfrentar, convence-nos de seu heroísmo. Os obstáculos são os testes das virtudes do herói: o homem liberto.

Em uma cena de humor impagável, Tarantino retrata o ridículo do nascimento da Ku Klux Klan. Ele sabe, ao contrário de Spike Lee, usar a arma do humor para desmoralizar instituições violentas como as forjadas pelo racismo. A história narrada abaixo, extraída do livro Freakonomics: O Lado Oculto e Inesperado de Tudo que nos Afeta, de autoria de Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner (Rio de Janeiro, Elsevier-Campus, 2005: 57-88), é um exemplo da importância de saber usar essa arma.

“Em termos de instituição, a Ku Klux Klan tem uma história de altos e baixos. Foi fundada em Pulaski, no Tennessee, no período imediatamente seguinte à Guerra de Secessão por seis ex-soldados confederados. Os seis jovens, dos quais quatro eram advogados iniciantes, se viam simplesmente como um círculo de amigos com idéias em comum — daí o nome escolhido, “kuklux“, leve alteração da palavra grega kuklos que significa “círculo“. A ela acrescentaram “klan” pois todos tinham ascendência escocês-irlandesa. No começo, as atividades do grupo eram consideradas inofensivas brincadeiras noturnas: usando lençóis brancos e capuzes feitos de fronhas, os rapazes andavam pelos campos a cavalo. Não demorou, porém, para que a Klan passasse a ser uma organização interestadual terrorista destinada a aterrorizar e matar escravos alforriados. Entre os líderes regionais havia cinco ex-generais confederados; seus maiores defensores eram os proprietários das fazendas agrícolas, para os quais a Reconstrução criara um pesadelo econômico e político.

Em 1872, o Presidente Ulysses S. Grant expôs claramente para o Congresso os verdadeiros objetivos da Ku Klux Klan: “Através da força e do terrorismo,

  1. impedir toda e qualquer ação política em desacordo com a visão de seus membros,
  2. privar os cidadãos de cor do direito de empunhar armas e do direito ao voto livre,
  3. fechar as escolas onde estudam crianças de cor e
  4. reduzir as pessoas de cor a uma condição intimamente associada à da escravidão.”

A antiga Klan fazia seu trabalho por meio de panfletagem, linchamentos, incêndios, castrações, surras e muitas outras formas de intimidação. Os alvos eram ex-escravos e quaisquer brancos que defendessem para os negros o direito ao voto, à propriedade de terras ou à instrução. Em pouco mais de uma década, porém, a Klan foi extinta, em grande parte devido às intervenções legais e militares oriundas de Washington, a capital do país.

Mas se a Klan propriamente dita foi vencida, seus objetivos haviam sido em boa medida realizados através da aprovação das Leis “Jim Crow” [apelido pejorativo aplicado a qualquer norte-americano negro a partir de 1832, equivalente a “João Ninguém”]. O Congresso, que durante a Reconstrução fora rápido na edição de medidas visando à liberdade jurídica, social e econômica dos negros, com igual rapidez voltou atrás. O governo federal concordou em retirar do Sul as tropas de ocupação, permitindo o retorno do domínio branco. Em Plessy x Ferguson, a Suprema Corte americana deu sinal verde para a segregação racial em larga escala.

A Ku Klux Klan hibernou até 1915, quando o filme de D.W. Griffith, O nascimento de uma nação – originalmente intitulado The Clansman [“O Homem da Klan”] –, ajudou a fomentar seu renascimento. Griffith mostrou os membros da Klan como cruzados em defesa da própria civilização branca e sua missão como uma das empreitadas mais nobres da história americana. Do filme constava uma frase do livro Uma História do Povo Americano, escrito por um famoso historiador: “Afinal, veio à luz uma grande Ku Klux Klan, um genuíno império do Sul, com a finalidade de proteger o interior sulista.” O autor do livro era o presidente americano Woodrow Wilson, no passado aluno e presidente da Universidade de Princeton.

Na década de 1920, uma Klan renascida já arregimentara oito milhões de membros, inclusive o Presidente Warren G. Harding, que, segundo se dizia, prestara seu juramento de membro no Salão Verde da Casa Branca. Nessa época, a Klan não mais se achava confinada ao Sul, vicejando em todo o país, bem como não possuía como alvos somente os negros, mas católicos, judeus, comunistas, sindicalistas, imigrantes, agitadores e outros insurgentes contra o status quo. Em 1933, com o crescimento de Hitler na Alemanha, Will Rogers foi o primeiro a estabelecer um paralelo entre a ressurgida Klan e a nova ameaça na Europa: “Todos os jornais afirmam que Hitler está tentando copiar Mussolini“, escreveu. “Para mim, ele está copiando a Ku Klux.”

A eclosão da Segunda Guerra Mundial e uma série de escândalos internos novamente jogou a Klan nas sombras. A opinião pública se voltou contra ela quando a unidade de um país em guerra foi de encontro à sua mensagem de separatismo.

Em poucos anos, porém, surgiram sinais de um renascimento maciço. A medida que a ansiedade do período da guerra cedia lugar à incerteza do pós-guerra, a adesão à Klan desabrochou. Pouco mais de dois meses depois do Dia da Vitória, a Klan de Atlanta queimou uma cruz de 90 metros na encosta da Stone Mountain, local da célebre efígie de Robert E. Lee esculpida na rocha. O ato extravagante, disse um membro da Klan mais tarde, teve como objetivo “apenas fazer ver aos negros que a guerra acabara e que a Klan estava de volta ao jogo”.

Atlanta era agora a sede da Klan. O grupo tinha ótimas relações com políticos influentes da Geórgia, e seus escritórios locais incluíam muitos policiais e vice-xerifes. Sim, a Klan era uma sociedade secreta, abundante em senhas e enredos capa-e-espada, mas seu verdadeiro poder residia no próprio temor público que ela fomentava — exemplificado pelo conhecimento geral de que a Ku Klux Klan e as autoridades responsáveis pela manutenção da ordem eram companheiras de armas.

Atlanta — a Cidade Imperial do Império Invisível da KKK, no jargão da Klan — também era o berço de Stetson Kennedy, um cidadão de 30 anos com as raízes de um Klansman, mas cujo temperamento o impelia na direção oposta. Nascido numa importante família sulista, Kennedy contava entre seus antepassados dois signatários da Declaração da Independência, um oficial do Exército Confederado e John B. Stetson, fundador da famosa fábrica de chapéus e dono do nome adotado pela Universidade Stetson.

Stetson Kennedy cresceu numa casa de 14 cômodos em Jacksonville, na Flórida, sendo o caçula de cinco filhos. Seu tio Brady pertencia à Klan, mas o sobrinho somente entrou em contato com o grupo quando a empregada da família, Flo, que praticamente criara o menino, foi amarrada a uma árvore, surrada e estuprada por um bando de adeptos da entidade. Seu crime: dirigir a palavra ao condutor branco de um bonde que lhe dera o troco errado.

Por não ter podido lutar na Segunda Guerra Mundial — em virtude de um problema na coluna adquirido na infância — Kennedy se sentiu obrigado a defender a pátria em casa. Considerava que o pior inimigo a enfrentar era o preconceito e se dizia “um dissidente generalizado”, escrevendo artigos e livros que atacavam o preconceito. Tornou-se muito amigo de Woody Guthrie, Richard Wright e uma série de outros progressistas. Jean- Paul Sartre publicou seus trabalhos na França.

Escrever não era para Kennedy uma atividade fácil nem prazerosa. Sendo, no fundo, um menino do campo, ele mil vezes preferia sair para pescar nos pântanos a empunhar a pena. No entanto, cegamente dedicado à causa que abraçara, não lhe restou outra escolha senão essa, que o levou a tornar-se o único membro gentio da Liga Antidifamação, entidade surgida no pós-guerra e devotada a acabar com o preconceito (Kennedy cunhou a expressão “Frown Power“, peça central da campanha de pressão da Liga, que encorajava as pessoas a ostensivamente franzir a testa quando ouvissem um discurso preconceituoso). Kennedy foi também o único correspondente branco do Pittsburgh Courier, o maior jornal negro do país (escrevia uma coluna sobre a luta racial no Sul sob o pseudônimo de Daddy Mention — um herói do folclore negro que, conta a lenda, era mais rápido que a bala do revólver do xerife).

O que movia Kennedy era o horror às mentes fechadas, à ignorância, ao obstrucionismo e à intimidação — mazelas que, em sua opinião, ninguém exibia com maior orgulho do que a Ku Klux Klan. Para ele, a Klan era o braço terrorista do próprio establishment branco, problema que considerava inabordável por uma série de razões.

  1. A Klan desfrutava da intimidade de líderes políticos, homens de negócios e autoridades do Poder Judiciário,
  2. o povo sentia medo e impotência diante dela, e
  3. os poucos grupos antipreconceito então existentes careciam de poder e até mesmo de conhecimento a seu respeito.

Conforme escreveu mais tarde, desgostava particularmente de um elemento-chave da Klan: “Praticamente o assunto só era tratado em editoriais e não como denúncias. Os autores reprovavam a Klan, é verdade, mas dispunham de pouquíssimos fatos comprovados referentes a ela.”

Por isso, Kennedy resolveu – como faria qualquer inimigo do preconceito que fosse devotado, destemido e meio insensato – aderir à Klan como espião.

Em Atlanta, começou a freqüentar um bilhar “cujos fregueses habituais”, conforme escreveu, “possuem aquele olhar frustrado e cruel típico da Klan”. Um indivíduo chamado Slim, motorista de táxi, sentou-se a seu lado no bar uma tarde. “Este país precisa é de uma boa kluxing“, disse Slim. “E a única maneira de pôr estes negros, jacós, carolas católicos e comunistas no devido lugar!”

Kennedy se apresentou como John S. Perkins, o nome falso que escolhera para sua missão. Partilhou com Slim a informação verdadeira de que seu tio Brady Perkins, lá na Flórida, já fora um Grande Titã da Klan. “Mas todos já morreram, não é?”, perguntou a Slim.

Isso levou Slim a sacar do bolso um cartão de visitas da Klan: “Ontem, Hoje, Sempre! A Ku Klux Klan continua em ação! Deus Nos Dá Homens!” Slim disse a “Perkins” que ele estava com sorte, pois havia um movimento de arregimentação em curso. A taxa de inscrição de $10 – o mote da Klan para estimular a adesão era “Você odeia negros? Odeia judeus? Tem dez dólares?” – fora reduzida para oito. Era preciso pagar mais $10 de contribuição anual e $15 pelo camisolão com capuz.

Kennedy reclamou do excesso de taxas, se fazendo de difícil, mas concordou em aderir. Pouco tempo depois, prestou juramento em uma missa noturna de iniciação no alto da Stone Mountain. A partir daí começou a comparecer às reuniões semanais, em seguida às quais corria para casa para fazer anotações utilizando uma escrita criptografada que inventara.

Descobriu as identidades dos líderes locais e regionais e decifrou a hierarquia, os rituais e a linguagem da Klan. Era hábito da organização acrescentar Kl a várias palavras; assim, dois membros da Klan mantinham Klonversas na Klestalagem local. Muitos dos costumes do grupo soavam ridiculamente infantis para Kennedy.

O aperto de mão secreto, por exemplo, era um movimento similar ao movimento sinuoso de um peixe feito com o pulso da mão esquerda. Se, durante uma viagem, um membro da organização desejasse localizar outros irmãos numa cidade estranha, bastava perguntar por um “Sr. Ayak” — sendo “Ayac” um código para “Are you a Klansman?” (Você é da Klan?), esperando ouvir como resposta “Claro, e também conheço um Sr. Akai” — código para “A Klansman Am I” (Da Klan eu sou).

Não demorou para que Kennedy fosse convidado a se juntar aos Klavaleiros, a polícia secreta da Klan e seu “esquadrão de açoite”. Para fazer jus a esse privilégio, seu pulso foi cortado com um canivete para que ele pudesse prestar um juramento de sangue:

“Membro da Klan, juras por Deus e pelo Demônio nunca trair os segredos a ti confiados na qualidade de Klavaleiro da Klan?”

“Juro”, respondeu Kennedy.

“Juras providenciar para ti mesmo uma boa arma e bastante munição, de modo a estar pronto, quando o negro criar problemas, a revidar à altura?”

“Juro.”

“Juras, ainda, fazer tudo a teu alcance para que cresça a raça branca?”

“Juro.”

Em seguida Kennedy foi instruído a pagar $10 pela sua admissão como Klavaleiro, bem como $1 por mês para cobrir as despesas dos Klavaleiros. Também foi obrigado a comprar um segundo camisolão com capuz a ser tingido de preto.

Como Klavaleiro, Kennedy se preocupava com a possibilidade de um dia ser forçado a agir com violência. No entanto, logo descobriu um fato básico da vida na Klan – e do terrorismo em geral: a maioria das ameaças de violência não passa jamais do estágio da ameaça.

Consideremos o linchamento, a marca registrada da violência da Klan. A seguir, compilada pelo Instituto Tuskegee, transcrevemos a estatística, década a década, dos linchamentos de negros nos Estados Unidos:

ANOS LINCHAMENTOS DE NEGROS

_________________________________________________

1890-1899: 1.111

1900-1909: 791

1910-1919: 569

1920-1929: 281

1930-1939: 119

1940-1949: 31

1950-1959: 6

1960-1969: 3

Não esqueçamos de que esses números representam não apenas os linchamentos atribuídos à Ku Klux Klan, mas o número total de linchamentos registrados. A estatística revela, no mínimo, três fatos dignos de nota.

  1. O primeiro é a óbvia diminuição de linchamentos ao longo do tempo.
  2. O segundo é a ausência de relação entre os linchamentos e a existência da Klan: na verdade houve mais linchamentos de negros entre 1900 e 1909, quando a Klan se encontrava hibernando, do que nos anos 20, quando a Klan abrigava milhões de membros — o que sugere que a Ku Klux Klan promoveu um número de linchamentos bem menor do que se costuma pensar.
  3. Em terceiro lugar, é válido observar que, com relação ao tamanho da população negra, os linchamentos eram bastante raros.

Claro que um linchamento já é demais. Mas, na virada do século, os linchamentos não constituíam o fato rotineiro que a memória histórica parece sugerir que fossem. Comparemos as 281 vitimas de linchamento na década de 1920 com o número de crianças negras mortas de desnutrição, pneumonia, diarréia e causas similares. Em 1920, cerca de 13 em cada 100 crianças negras morriam na infância, ou seja, aproximadamente 20 mil a cada ano — em comparação com 28 pessoas que eram linchadas por ano. Mesmo em 1940, cerca de 10 mil crianças negras ainda morriam a cada ano.

Que verdades maiores esses números sugerem? Como se explica que os linchamentos fossem relativamente raros e que tenham sofrido uma queda expressiva ao longo do tempo, mesmo diante do boom da Klan?

A explicação mais convincente é a de que todos aqueles primeiros linchamentos funcionaram. Os racistas brancos — fossem ou não membros da Klan — através de seus atos e retórica foram capazes de criar um forte esquema de incentivos que era, ao mesmo tempo, incrivelmente claro e amedrontador. Se um negro violasse o código de comportamento aceito, fosse por falar com um condutor branco de bonde ou por tentar votar, ele sabia que provavelmente seria punido, talvez com a morte.

Assim, em meados dos anos 40, quando Stetson Kennedy entrou para a Klan, a organização não tinha realmente necessidade de usar tanta violência. Muitos negros, há tanto tempo treinados para se comportarem como cidadãos de segunda classe — à custa d e intimidação —, simplesmente obedeciam. Um ou dois linchamentos produziam um bom efeito profilático na indução da docilidade mesmo quando se tratava de um grupo grande, pois as pessoas costumam responder muito bem a incentivos fortes, sendo que poucos deles são mais poderosos do que o temor da violência aleatória — razão pela qual, em essência, o terrorismo é tão eficaz.

Mas se a Ku Klux Klan dos anos 40 não agia com uma violência uniforme, quem o fazia? Na verdade, a Klan que Stetson Kennedy descobriu consistia de um arremedo de fraternidade de indivíduos, a maioria deles com pouca instrução e poucas perspectivas, necessitados de um lugar para se abrir e de uma desculpa para, vez por outra, passar a noite fora de casa. O fato de que essa fraternidade promovia a cantoria de hinos semi-religiosos, a prestação de juramentos e a entoação de louvores a si própria – tudo de forma ultra-secreta – só a tornava mais sedutora.

Kennedy também descobriu ser a Klan uma operação financeira vigarista, ao menos para aqueles em seu topo. Os líderes possuíam uma série de fontes de renda:

  1. milhares de membros contribuindo com taxas obrigatórias;
  2. empresários que a contratavam para amedrontar os sindicatos que, por sua vez, pagavam a ela para não serem importunados;
  3. comícios que angariavam enormes doações em dinheiro e até mesmo o eventual contrabando de armas ou bebidas;
  4. isso sem contar as negociatas, como a Associação de Seguros de Vida da Klan, que vendia apólices para os membros, aceitando exclusivamente dinheiro vivo ou cheques emitidos em nome do próprio Grande Dragão.

Poucas semanas na Klan bastaram para Kennedy se decidir a investir contra ela como lhe fosse possível. Quando tomou conhecimento dos planos para a invasão de um sindicato, passou a informação para um amigo sindicalizado. Levou, ainda, outras informações que obteve na Klan ao assistente do procurador-geral da Geórgia, um conhecido perseguidor da organização. Depois de examinar o estatuto de constituição da Klan, Kennedy escreveu para o governador da Geórgia sugerindo os fundamentos para a revogação do dito estatuto: a Klan havia sido fundada para ser uma entidade não-lucrativa e apolítica, mas ele tinha provas de que a mesma visava, claramente, tanto o lucro quanto a política.

Nenhuma de suas tentativas produziu o efeito desejado. A Klan estava de tal forma enraizada e forte que Kennedy se sentiu como alguém que atira seixos em um gigante. E ainda que conseguisse de alguma forma prejudicar a organização em Atlanta, os milhares de outras sedes em todo o país – a associação se encontrava agora em pleno ressurgimento – permaneceriam intocados.

Kennedy ficou profundamente frustrado, e dessa frustração brotou uma idéia brilhante. Assistira, certa vez, um grupo de meninos se divertirem com um jogo de espionagem no qual senhas secretas tolas. Isso o fez lembrar da Klan. Não seria interessante, pensou, passar para as crianças em todo o país as senhas e o restante dos segredos da organização? Que melhor maneira haveria de podar as garras de uma sociedade secreta senão infantilizar — e tornar públicas – suas mais secretas informações? (Coincidentemente, em O Nascimento de Uma Nação, um ex-soldado confederado tem a idéia de fundar a Klan quando vê duas crianças brancas se esconderem sob um lençol branco para aterrorizar um grupo de crianças negras.)

Kennedy imaginou o canal ideal para sua missão: o programa de rádio As aventuras do Super-Homem, que ia ao ar todas as noites na hora do jantar para milhões de ouvintes em cadeia nacional. Entrando em contato com os produtores do programa, perguntou-lhes se gostariam de escrever alguns episódios sobre a Ku Klux Klan. Os produtores se entusiasmaram. O Super-Homem passara anos lutando contra Hitler, Mussolini e Hirohito, mas a guerra chegara ao fim, e ele precisava de novos vilões.

Kennedy forneceu as melhores informações de que dispunha sobre a Klan para os produtores do Super-Homem.

  1. Falou-lhes do Sr. Ayak e do Sr. Akai e transcreveu trechos inflamados da bíblia da Klan, chamada Klorão (jamais lhe explicaram por que um grupo preponderantemente branco e cristão havia dado à sua bíblia o nome do livro mais sagrado do Islã).
  2. Explicou o papel das autoridades da Klan em qualquer Klestalagem local: o Klaliff (vice-presidente), o Klabee (tesoureiro), o Kladd (dirigente), o Klarogo (sentinela interna), o Klexter (sentinela externa), o Klokann (uma comissão de investigação de cinco homens) e os Klavaleiros (o grupo armado ao qual o próprio Kennedy pertencia e cujo comandante era chamado Despedaçador-Morde Traseiros).
  3. Detalhou a hierarquia da organização e sua estrutura, do nível local ao nacional: os Ciclopes Máximos e seus 12 Terrores; um Grande Titã e suas 12 Fúrias; um Grande Dragão e suas nove Hidras; e o Mago Imperial e seus 15 Genii.
  4. Além disso, Kennedy revelou aos produtores as senhas, os planos e as fofocas da assembléia da filial da Klan a que pertencia, a Klestalagem Nathan Bedford Forrest n° 1, Atlanta, Domínio da Geórgia.

Os produtores radiofônicos começaram a escrever o equivalente a quatro semanas de programas nos quais o Super- Homem iria acabar com a Ku Klux Klan.

Kennedy mal pôde esperar a primeira reunião da Klan depois da transmissão do programa. Conforme previra, encontrou a Klestalagem em polvorosa. O Grande Dragão tentou conduzir uma reunião normal, mas a algaravia de seus comandados não permitiu.

“Quando voltei do trabalho uma noite dessas”, queixou-se um deles, “meu filho e um bando de amiguinhos estavam brincando. Uns tinham toalhas amarradas ao pescoço, como capas, e outros usavam fronhas na cabeça. Os das capas perseguiam os das fronhas. Quando perguntei o que faziam, responderam que era uma nova brincadeira de polícia e ladrão chamada “O Super-Homem contra a Klan’. Polícia e ladrão! Eles sabiam as nossas senhas e tudo o mais. Nunca me senti tão ridículo na vida! E se meus próprios filhos encontrarem meu camisolão da Klan?

O Grande Dragão prometeu desmascarar o Judas entre eles.

“O mal já está feito”, disse um Klansman.

“Nosso ritual sagrado foi profanado por um punhado de garotos no rádio!”, indignou-se o Kladd.

“Nem tudo foi ao ar”, observou o Grande Dragão.

“Só deixaram de fora o que não era importante”, disse o Kladd.

O Dragão sugeriu a substituição imediata da senha, de “sangue nas veias” para “morte aos traidores“.

Após a reunião daquela noite, Kennedy passou por telefone a nova senha para os produtores do Super-Homem, que prometeram divulgá-la no próximo episódio. Na reunião da semana seguinte, a sala estava praticamente vazia. As novas propostas de adesão haviam sido reduzidas a zero.

De todas as idéias que Kennedy teve – e que ainda viria a ter – para combater o preconceito racial, a campanha do Super-Homem foi certamente a mais inteligente e provavelmente a mais produtiva.

Seu efeito foi, precisamente, o esperado: virar o segredo da Klan contra ela mesma, transformando informações privilegiadas em munição para zombarias. Em lugar de atrair milhões de membros como fizera apenas uma geração atrás, a Klan perdeu a força e começou a afundar. Embora jamais viesse a morrer de todo, principalmente no Sul — David Duke, um líder de fala macia da Klan de Louisiana, concorreu legitimamente ao Senado americano e a outros cargos eletivos —, a Klan nunca mais foi a mesma. Em The fiery cross: the Ku Klux Klan in America, o historiador Wyn Craig Wade afirma que Stetson Kennedy foi “o principal fator isolado que impediu o ressurgimento no pós-guerra da Ku Klux Klan no Norte”.

Isso não se deveu ao fato de Kennedy ser corajoso, decidido ou persistente, embora ele fosse todas essas coisas. Tudo aconteceu porque Kennedy percebeu o poder da informação em si. A Ku Klux Klan foi um grupo cujo poder — à semelhança daquele dos políticos e dos corretores de imóveis ou da Bolsa — em grande parte resultava da sonegação de informações. Uma vez nas mãos erradas (ou, dependendo do ponto de vista, nas mãos certas), boa parcela da superioridade do grupo vira pó.”

Será que Spike Lee não percebeu a força da arma da zombaria de “Django Livre contra os Racistas”, assim como “O Super-Homem contra a Klan”?! Propor o boicote do filme pelos “irmãos de cor” não é sonegação de informações?!

8 thoughts on “Django Livre X KKK

  1. É interessante a vida de Tarantino e como ele chegou à construção de seus filmes. Também ví Django Livre, e Tarantino sabe usar a linguagem, a simbologia e vários outros recursos. Tem a sua marca também – sanguinário, um exagero – mas até esta parte é muito bem elaborada. Lamentável a postura do Spike Lee. Além de perder a oportunidade de ver um ótimo trabalho, acabou – e esta é a melhor – fazendo propaganda para Django e chamando a atenção para aspectos importantes do filme, que talvez até passasse despercebido para uma boa parcela do público.

    • Pelo que eu sei, Tarantino trabalhava em Locadora de Vídeos. Viu todos os filmes pops, conhece o gosto médio do público, tem criatividade em seus roteiros, principalmente nos diálogos, não? Faz rir pelo absurdo das situações comentadas. Eu viro a cara nas cenas de ultra-violência. Isto é parte da cultura norte-americana que não aprecio nada. Mas tem muita gente que gosta de “porrada”. Assistem até luta dos “gladiadores modernos”!
      att.

  2. filmes que influenciaram o cineasta:

    spaguetti westerns:
    FOR A FEW DOLLARS MORE (1965, Dir: Sergio Leone)

    DJANGO (1966, Dir: Sergio Corbucci)

    DEATH RIDES A HORSE (1967, Dir: Guilio Petroni)

    DAY OF ANGER (1967, Dir: Tonino Valerii)

    THE GREAT SILENCE (1968, Dir: Sergio Corbucci)
    http://www.spaghetti-western.net/index.php/Grande_silenzio,_Il

    ***
    americandos/faroeste/outros filmes B:
    HANNIE CAULDER (1970, Dir: Burt Kennedy)
    trailer:http://www.youtube.com/watch?v=Pvp3ifsAaQ0

    SKIN GAME (1971, Dir: Paul Bogart)
    trailer: http://www.videodetective.com/movies/the-skin-game/5041

    GOODBYE UNCLE TOM (1971, Dir: Gualtiero Jacopetti, Franco Prosperi)
    trailer: http://www.youtube.com/watch?v=6Dxd5T4Gjw0

    LEGEND OF NIGGER CHARLEY (1972, Dir: Martin Goldman)
    trailer:http://www.youtube.com/watch?v=yy0DqQ4NqTA
    http://www.grindhousedatabase.com/index.php/The_Legend_of_Nigger_Charley

    BUCK AND THE PREACHER (1972, Dir: Sidney Poitier)
    trailer: http://www.youtube.com/watch?v=5dYyeTA_D1E

    CHARLEY ONE-EYE (1973, Dir: Don Chaffey)
    trailer:http://www.youtube.com/watch?v=CwRjlAZFXcA
    http://www.grindhousedatabase.com/index.php/Charley_One-Eye

    THOMASINE & BUSHROD (1974, Dir: Gordon Parks Jr)
    http://www.grindhousedatabase.com/index.php/Thomasine_and_Bushrod

    BOSS NIGGER (1975, Dir: Jack Arnold)
    trailer:http://www.youtube.com/watch?v=i-Fig_LoBy4
    http://www.grindhousedatabase.com/index.php/Boss_Nigger

    MANDINGO (1975, Dir: Richard Fleischer)
    trailer: http://www.youtube.com/watch?v=1priqpSfjvY
    http://www.grindhousedatabase.com/index.php/Mandingo

    DRUM (1976, Dir: Steve Carver)
    http://www.grindhousedatabase.com/index.php/Drum
    trailer: http://www.youtube.com/watch?v=8Ps9A6SqPSw

    ROOTS (TV, 1977 Dir: Marvin J. Chomsky)

    Fonte:
    http://www.furiouscinema.com/2012/03/the-django-unchained-primer/

    ***

    abrx

    mrl-x

    namastê

  3. referencias de filmes no filme:
    Classic Exploitation Film References
    Mandingo

    List of Mandingo DVDs and Bluray at the GDCB
    1975 film starring Ken Norton. A term for an African slave/fighter in the 1800s.
    Django

    Article page at the SWDB
    This is of course the seminal movie by Corbucci which in parts inspired Tarantino.
    Shango

    Article page at the SWDB
    Django is pronounced with a silent D, so it also sounds like this spaghetti western
    Minnesota Clay

    Article page at the SWDB
    This is a spaghetti western, one of Corbucci’s early works, and also the title of a saloon in Django Unchained.
    Charley One-Eye

    Article page at GCDB
    A definition is given as to what the term means.
    The Hot Box

    Article page at GCDB
    A punishment cell for slaves used in the film.
    Goodbye Uncle Tom

    Article page at GCDB
    A very controversial mondo film about slavery in the Antebellum South.
    The Legend of Nigger Charley

    Article page at GCDB
    70s Blaxploitation film starring Fred Williamson that dealt with a slave who gets back at white oppressors.
    Angel Unchained

    Article at GCDB
    Film about an ex-biker gang member who helps some hippies fight a group of rednecks that terrorize their peaceful commune. Don Stroud who plays Sheriff Bill Sharp starred in the film.

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    filmes de tv e cultura pop:
    TV Series
    Lee Horsley who plays Sheriff Gus was the star of the 80s private eye series Matt Houston.
    Don Johnson who plays Big Daddy was the star of the hit 80s crime series Miami Vice.
    Tom Wopat who plays U.S. Marshall Gill Tatum was Luke Duke on The Dukes of Hazzard. In another connection that series also featured QT’s acting teacher James Best as Sheriff Roscoe P. Coltrane.
    Pop Culture References
    The Cleopatra Club, a place for interracial couples, is named after the Egyptian queen.
    One of the slaves is named D’Artagnan, who is also the main character in Alexandre Dumas’ book The Three Musketeers.
    The woman in Candie’s home plays a song by Beethoven, (a famous German) on the harp.

    ***
    fonte:
    http://wiki.tarantino.info/index.php/Django_Unchained_Movie_References_guide

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    mrlx

    namastÊ

  4. Caro Fernando
    Parabéns pelo comentário, que vai muito além do filme. Compartilho a tua visão de que não é um filme desrespeitoso aos negros e sua luta contra a escravidão. Ao contrário, a verdadeira violência não é a do Django, quase hilária, mas sim a dos brancos contra os negros, obrigados a lutar até a morte para sobreviver (para que?), jogados aos cachorros enraivecidos e famintos ou entregues como prendas para satisfazer os desejos dos senhores. O filme é bem humorado e conta a estória mais com imagens, sons e sensações do que com palavras, como convém ao cinema. Os personagens são apresentados como estereótipos de gente real, mas a verdade é que nenhum deles é estereótipo no sentido que configurarem representações exageradas ou distorcidas da realidade. Infelizmente são todos reais e basta abrir os jornais para constatar a presença dos angels, bad and wise no nosso dia a dia. Parabéns mesmo. Tuca
    PS. Não resisto a cair em tua provocação e dizer que a associação entre os caçadores de recompensas e a terceirização das penitenciárias é inadequada, revela que apesar de sábio e muito bem informado você ainda não entendeu bem este ponto e continua achando que o Estado tem que fazer tudo, mesmo que seja mal feito e com custo mais elevado para a sociedade, e que as funções de Estado só podem ser executadas por funcionários públicos contratados pelo regime especial e por organizações públicas regidas por uma legislação da administração pública burra e que foi feita justamente para tentar evitar ou coibir o mal funcionamento deste mesmo Estado que é tão idolatrado.

    • Prezado Tuca,
      agradeço seu sábio comentário e já rezei muito, na minha infância, para que “não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.”

      Mas não resistirei à tentação de mostrar como discordamos do Financial Times! Você leu a resenha abaixo, republicada no Valor (22/12/12)?
      abs

      Christopher Caldwell | Financial Times

      “O momento mais intrigante no novo filme de Quentin Tarantino, “Django Livre”, aparece nos créditos finais. O espectador vê a the American Humane Association [Associação Humana Americana] garantindo que nenhum animal foi ferido nas filmagens.

      No filme, que se passa no Sul, antes da Guerra Civil americana, escravos são amarrados a árvores e chicoteados. Um lutador negro nu é ordenado a golpear a cabeça de outro com um grande martelo. Cachorros despedaçam um escravo em fuga. Tudo isso, para preparar o caminho para um massacre de homens e mulheres brancos no fim. Tarantino prolonga-se sobre as vítimas enquanto se contorcem, engasgam e gritam em agonia. Depois de assistir a “Django Livre”, o espectador não sai tão preocupado com a atitude de Tarantino quanto aos animais, mas sobre sua atitude quanto às pessoas.

      A.O. Scott, crítico do “The New York Times”, o considerou um “importante e inquietante filme sobre escravidão e racismo”. Ele está errado. Um caçador de recompensas nascido na Alemanha (Christoph Waltz) liberta o escravo Django (Jamie Foxx), na esperança de que ele possa identificar uma gangue de assassinos. Os dois tentam libertar a mulher de Django da fazenda para onde foi levada pelo “mounsier” Candie (Leonardo DiCaprio).

      Os detalhes sobre o período, às vezes, parecem ser precisos (os escravistas podem ter realmente usado a palavra “nigger” – termo pejorativo para negro, em inglês – tantas vezes como os personagens de Tarantino usam) e, às vezes, não (nunca houve algo como “luta de mandingo”).

      Naturalmente, não podemos confundir um longa-metragem de ficção com um documentário de TV pública – o objetivo de Tarantino é entreter, não iluminar. Mas é por isso que o filme não é importante nem inquietante, a não ser como sintoma cultural. “Django Livre” usa a escravidão da mesma forma que um filme pornográfico poderia usar uma convenção de enfermeiras: como pretexto para o que realmente se pretende mostrar para entreter. E o que realmente se quer mostrar para nos entreter em “Django Livre” é a violência.

      Scott escreve que “vingança na imaginação americana era prerrogativa praticamente exclusiva dos homens brancos”. No cinema, os negros também deveriam praticar a “violência redentora”, da mesma forma como os brancos fizeram por tanto tempo.

      Ele acrescenta: “Pense nisso quando começarem as aflições em ‘Django Livre’ e se pergunte por que a violência neste filme vai repentinamente parecer tão mais problemática, tão mais lamentável, do que acaba passando sem [provocar o mesmo tipo de] comentário em ‘Jack Reacher: O Último Tiro’ ou ‘Busca Implacável 2′”. Mas esse argumento, de “agora se coloque na situação do outro”, é enganoso. Em nenhum outro grande filme americano as pessoas brancas cobram a vingança racial da forma como “Django Livre” faz.

      E o amor de Tarantino pela violência não é “repentinamente” problemático. É o único prazer que qualquer um possivelmente poderia ter com seu primeiro filme, o estarrecedor “Cães de Aluguel” (1992). “Pulp Fiction – Tempo de Violência” (1994) e “Jackie Brown” (1997), apesar de todas as situações irônicas e do humor insano, também trazem cenas memoráveis de terrível violência.

      Os dois filmes mais recentes de Tarantino trouxeram uma estranha novidade. Ele não apenas mostrou a crueldade, mas também tentou politizá-la e enobrecê-la. “Bastardos Inglórios” (2009) mostra uma gangue de judeus americanos que viajam pela Alemanha escalpando nazistas e estourando suas cabeças com bastões de beisebol. Acaba com uma cena de tortura (um de nossos heróis entalha um suástica na cabeça de um nazista), o que certamente se supõe que vamos gostar.

      Nazistas e senhores de escravos, naturalmente, são vilões corriqueiros no mundo da correção política. Os cineastas os vêm matando há décadas. A novidade em Tarantino é a forma pomposa, digna de um advogado, como determina regras básicas para ampliar as circunstâncias em que se pode matar com prazer e impunidade. O escalpe é permitido porque “um nazi não tem humanidade”. Django pode atirar no joelho do mordomo da fazenda Stephen (Samuel L. Jackson) porque ele estipulou no início do filme que não há “nada mais baixo do que um ‘nigger’ na casa-grande”. É claro, Stephen é mais uma vítima do sistema escravista do que seu representante. Ele é um escravo.

      As indignidades mostradas com vários escravos (“Depois disso, vamos ver se você voltará a quebrar ovos!”, grita um personagem bestial enquanto se prepara para chicotear uma garota) servem para nos fazer ficar à vontade com a retaliação racial final, mesmo quando a vingança de Django chega a brancos (camponeses e carcereiros) que não exercem mais controle sobre o sistema do que Stephen.

      O cineasta Spike Lee considerou o filme “desrespeitoso” com seus “ancestrais”. A declaração confundiu algumas pessoas, mas não deveria. “Mounsier” Candie, em certo momento, se pergunta: “Cercado por rostos negros, dia após dia, tenho uma questão: por que eles não nos matam?”. É uma excelente pergunta.

      Não importa como você as responda, o fato é, eles não mataram. Aos olhos da história, os negros anteriores à Guerra Civil (1861-1865) mantiveram uma honra que será negada a seus opressores brancos para sempre. Talvez, Lee se oponha ao fracasso em ver essa honra. Onde Tarantino vê solidariedade com as vítimas do passado, outros poderiam ver um americano contemporâneo branco disposto a achar que, dada a oportunidade, em tempos passados, outras etnias teriam se comportado tão miseravelmente quanto a sua própria.”

      • Fernando, a pergunta do Monsier é mesmo crucial e nunca li nenhuma resposta minimamente satisfatória. Entendo que as massas possam ser controladas, mas que o cara com a navalha na garganta do opressor não tenha poder e não a utilize para eliminá-lo eu não consigo entender. Lembro que quando vi o filme Aguirre esta mesma indagação me ocorreu. O único cara não armado no barco era o Klaus Kinski, que dominava a todos com gritos, ameaças e ações, sem reações. Incrível o mecanismo de domínio e poder, né? Volto ao trabalho. Abs Tuca

      • Tuca,
        “Monsieur” Candie, em certo momento, se pergunta: “Cercado por rostos negros, dia após dia, tenho uma questão: por que eles não nos matam?”

        A resposta filosófica que me parece melhor deu Etienne La Boétie, anos antes dessa pergunta, em seu Discurso da Servidão Voluntária (https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2010/07/17/discurso-da-servidao-voluntaria-etienne-la-boetie/)

        Na maior parte da história humana, havia uma maioria de escravos: por que não se revoltou?

        A pergunta-chave dessa obra clássica é: por que tantos homens suportam às vezes um tirano só? Servidão só existe para um pela vontade de outro: o escravo precede o senhor. Por que ele serve a quem só o faz padecer?

        Em Discurso da Servidão Voluntária, editado pela primeira vez em 1553, seu autor – Etienne La Boétie – sugere que, “uma vez instalado, o tirano detém a vontade e o poder de subjugar”. Mas não se torna senhor por querer, e sim por ter ocupado determinado lugar já preparado, por ter respondido à demanda já formulada por aqueles, naqueles que domina: o povo. A cada momento de seu império, a tirania se engendra a partir da vontade de servir. A força da servidão não é, fundamentalmente, o medo. A servidão não nasce da covardia, assim como a liberdade não nasce da coragem. O chocante da questão da servidão voluntária é a estranha vontade ou o estranho desejo de servir.

        O ser humano sempre tem desejos estranhos, não?

        abs

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