Subversão da Economia: relações incestuosas entre academia, governo e mercado

Em artigo publicado originalmente no site americano “Chronicle of Higher Education“, em 3 de outubro de 2010, e reproduzido pela Folha de S. Paulo – Ilustríssima, em 31 de outubro de 2010 (traduzido por Paulo Migliacci), Charles Ferguson, diretor do filme Inside Job, em exibição na 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, discute os conflitos de interesses na atuação de economistas no governo dos EUA, na universidade e no setor privado, cujo símbolo é o ex-reitor de Harvard e presidente do Conselho Econômico dos EUA Larry Summers. Retirando as referências a esse caso pessoal, farei condensação de seus argumentos que merecem reflexão também para análise dessa promiscuidade no caso brasileiro.

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“Ao longo dos últimos dois anos, fiz um profundo mergulho nesses mundos a fim de realizar um filme, ‘Trabalho Interno’ [Inside Job, exibido na 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo], que oferece um panorama abrangente sobre a crise financeira. E Summers estava presente por onde quer que eu passasse.

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Summers é um caso singular, mas não único. A essa altura, todos estamos familiarizados com o papel dos lobbies e das contribuições para campanhas políticas, e com a porta giratória que separa governo e setor privado. O que poucos americanos compreendem é que essa porta giratória se tornou uma interseção tripla. A carreira de Summers resulta de um escândalo extraordinário e pouco notado pela sociedade americana: a convergência entre a academia, Wall Street e o poder político.

Desde os anos 1980, sob forte influência das teorias econômicas do “laissez-faire“, os Estados Unidos vêm desregulamentando seus serviços financeiros. E não demorou muito, depois que o processo começou, para que o país começasse a experimentar crises.

A primeira delas surgiu com os escândalos do mercado de “junk bonds” [os títulos financeiros de alto rendimento e alto risco] e das empresas de poupança e crédito imobiliário, nos anos 1980; depois, veio a bolha no setor de internet, no final dos anos 1990; depois a Enron; e, em seguida, a bolha da habitação, que conduziu à crise financeira mundial.

No entanto, ao longo de todo esse período, o setor financeiro dos Estados Unidos cresceu, ganhou poder e se tornou imensamente mais lucrativo. Por volta de 2006, os serviços financeiros respondiam por 40% dos lucros privados americanos. Em larga medida, isso se devia à corrupção do sistema político pelo setor financeiro. Mas, no processo, o estudo da Economia também estava sendo subvertido.

Ao longo dos últimos 30 anos, a Economia como profissão – nos Departamentos de Economia universitários, nas empresas, nas instituições públicas e nas escolas de direito – se comprometeu tanto em conflitos de interesse que, agora, funciona quase como um grupo de apoio a setores como os de serviços financeiros e outros, cujos lucros dependem de forma acentuada das políticas governamentais. E não se trata apenas de ideologia; falamos de dinheiro puro e simples.

Economistas acadêmicos de renome (e em certos casos também professores de Direito e de Administração Pública) recebem pagamentos de empresas e grupos de interesse por depoimentos ao Congresso, estudos, palestras, participação em conferências, participação em conselhos corporativos, redação de petições para processos regulatórios, defesa de companhias em casos antitruste e, claro, por seu trabalho de lobby. Trata-se de negócio que se tornou literalmente bilionário.

O Law and Economics Consulting Group, criado há 22 anos por professores da Universidade da Califórnia em Berkeley é hoje empresa de capital aberto avaliada em US$ 300 milhões. Outras organizações especializadas na venda (ou “locação”) de conhecimentos acadêmicos especializados são a Competition Policy (hoje Compass Lexecon), o Analysis Group e a Charles River Associates.

Em meu filme, você verá muitos economistas famosos ostentando expressões de desconforto, quando confrontados com suas atividades no setor financeiro. Como Michael Feldstein, por exemplo, professor em Harvard e um dos grandes arquitetos da desregulamentação financeira nos anos Reagan.

Feldstein presidiu por 30 anos o Serviço Nacional de Pesquisa Econômica, e integrou por 20 anos os conselhos da AIG – da qual recebeu mais de US$ 6 milhões- e da AIG Financial Products, cujas transações com derivativos destruíram a própria empresa. Feldstein é autor de centenas de trabalhos acadêmicos, sobre diversos assuntos; nenhum deles trata dos perigos dos derivativos financeiros não regulamentados ou da estrutura de remuneração dos executivos.

Outro exemplo: Frederic Mishkin, professor na escola de administração de empresas da Universidade Columbia e membro do conselho do Fed de 2006 a 2008. Mishkin recebeu US$ 124 mil da Câmara de Comércio da Islândia por um estudo no qual elogiou os sistemas regulatório e bancário islandeses, dois anos antes que o esquema de pirâmide do setor financeiro desabasse, causando prejuízos de US$ 100 bilhões ao país.

E John Campbell, antigo diretor do departamento de economia de Harvard, que encontrou grande dificuldade para explicar por que não deveríamos nos preocupar com os conflitos de interesses dos economistas.

Será que ele pode ter razão? Esses professores estariam sendo pagos simplesmente para dizer o que diriam de qualquer maneira? É improvável. Todos esses professores tampouco parecem fazer declarações políticas contrárias aos interesses financeiros de seus clientes. E todos eles se opõem à divulgação transparente de informações sobre seus relacionamentos comerciais.

As universidades fingem não ver e, deliberadamente, não requerem que seus professores revelem eventuais conflitos de interesse ou reportem renda obtida de outras fontes. Quando Summers foi reitor de Harvard, ele não se esforçou para mudar essa situação.

Agora, porém, Summers está sendo gentilmente excluído do governo e Harvard se prepara para recebê-lo de braços abertos. Como o mundo acadêmico o recepcionará? A resposta resumida: melhor do que ele merece.

Enquanto estava trabalhando no meu filme, escrevi aos reitores e diretores de Harvard e outras universidades, com perguntas detalhadas sobre suas políticas quanto ao conflito de interesses, e solicitei entrevistas sobre o assunto. Nenhum deles respondeu com mais que a recomendação de que visitasse o site da universidade.

A academia precisa, antes de tudo, curar a si mesma”.

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