Em Defesa do Estado Laico

Estado-Laico

Nesta semana de avaliação das religiões, o artigo mais interessante que eu li foi o do Reginaldo Prandi (FSP, 21/07/13) – A Conversão do Pentecostalismo. Sua hipótese é que, depois de trocar o discurso do desapego material pela apologia do consumo, o pentecostalismo brasileiro se vê instado a afrouxar sua moral conservadora para conquistar segmentos mais abastados e escolarizados. No entanto, Prandi argumenta que, na trilha para se tornar a força religiosa dominante no país, ele terá de se dobrar ao éthos nacional.

Estado X ReligiãoEssa argumentação é importante para nos prevenirmos quanto à repetição do debate que já se tornando típico de ano-eleitoral: criacionismo, aborto, etc., usado como arma política contra candidatos defensores do Estado laico: aquele que não pertence ao clero nem a uma ordem religiosa; leigo que é hostil à influência, ao controle da Igreja e do clero sobre a vida intelectual e moral, sobre as instituições e os serviços públicos. Acho que qualquer candidatura à Presidência da República deve ser é independente em face do clero e da Igreja, e, em sentido mais amplo, de toda confissão religiosa.

“O avanço acelerado das igrejas evangélicas anuncia para breve um Brasil de maioria religiosa evangélica. Se isso vier a acontecer, o país se tornará também culturalmente evangélico? Traços católicos e afro-brasileiros serão apagados, assim como festas profanas malvistas pela nova religião predominante?

Deixarão de existir o Carnaval, as festas juninas, o famoso São João do Nordeste? Rios, serras, cidades, ruas, escolas, hospitais, indústrias, lojas terão seus nomes católicos trocados? A cidade de São Paulo voltará a se chamar Piratininga? E mais, mudarão os valores que orientam a vida por aqui?

Provavelmente não, porque a religião mudaria antes. Ela se reconfigura em resposta a demandas sociais, e essa recauchutagem é tão mais profunda quanto maiores forem a consolidação e a difusão da crença. Deixa de ser radical e sectária, ajusta-se. Vê-se isso na história recente das próprias religiões evangélicas.

Igrejas pentecostais pregavam uma ética de afastamento do mundo, com profundas restrições ao consumo. Ao preconizar vida simples e despojada, ofereciam um modelo ideal de conduta para uma classe proletária então destinada a ganhar mal e comprar pouco.

Quando a âncora da economia muda do trabalhador que produz para o consumidor (garantidor do crescimento), o pentecostalismo tem de rever sua posição sobre o consumo, até então encarado como ponte para o mundanismo.

Dessa forma, acompanhou a mudança e adotou a teologia da prosperidade – coisa de gênio. Abandonou o princípio de que o dinheiro é do diabo e largou mão do velho ascetismo, mantido na esfera da sexualidade. Adequou-se às aspirações de classe média no que diz respeito a vestir-se, educar os filhos, ter tudo de bom em casa, comprar carro, viajar a turismo e muito mais.

A nova teologia promete que se pode contar com Deus para realizar qualquer sonho de consumo. Em suma, já não se consegue, como antes, distinguir um pentecostal na multidão por suas roupas, cabelo e postura. Tudo foi ajustado a novas condições de vida num país cujo governo se gaba do (duvidoso) surgimento de certa “nova classe média”, de fato cliente preferencial das lojas de R$ 1,99.

Incapazes de influir nos grandes temas da sociedade, as igrejas pentecostais ajustaram o foco na velha preocupação com a vida íntima. Agarraram-se a uma moralidade mesquinha e reacionária, tão fácil de impor aos descontentes com sua vida pessoal.

A maioria dos pentecostais é de recém-convertidos, e conversão precisa de motivo forte, subjetivo, que tenha elo direto com felicidade e capacidade de viver bem.

A interferência da religião nos costumes poderia vir agora também pela imposição da lei. Para fazer mudanças a seu gosto, o credo da nova maioria contaria com as casas legislativas, onde vai ampliando suas fileiras. Bem no tom de ameaça do pastor e deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP).

Ao perder uma batalha em sua guerra homofóbica travada nas trincheiras da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, que espantosamente continua a presidir, ele acenou para um revide amparado na possibilidade de a bancada evangélica dobrar numericamente na próxima legislatura.

O instituto Datafolha confirma: se dependermos da opinião expressa por pentecostais, o Brasil pode retroceder em matéria de família, sexualidade e liberdade de escolhas e abandonar normas e direitos fixados após longas lutas.

A pesquisa publicada pela Folha mostra que, no continuum da moralidade, as posições estão bem marcadas: os pentecostais formam o segmento mais atrasado. Os católicos são tão avançados quanto a população média do país, maioria que são. Os evangélicos não pentecostais ocupam posição intermediária entre católicos e pentecostais; já tiveram sua fase de sectários e poderiam representar hoje os pentecostais de amanhã.

Os sem religião, espíritas e umbandistas tendem a ter posição condizente com os avanços da sociedade, à frente dos católicos, mas são muito minoritários. Outras religiões, pelo pequeno número de seguidores na população, nem aparecem na amostra.

É preciso lembrar que, independentemente de religião, os mais pobres e os menos escolarizados, camadas em que os pentecostais arregimentam preferencialmente seus adeptos, estão menos afeitos ao avanço dos costumes e direitos.

Religião e posição social se atraem e se somam. Por outro lado, se o pentecostalismo também sonha em ser uma religião de classe média ilustrada, terá de mudar.

Ainda que majoritária, condição aqui apenas hipotética, a religião evangélica, sobretudo pentecostal, seria a crença de indivíduos convertidos um a um, e não a que funda uma nação e fornece os elementos formadores de sua cultura, lugar ocupado pelo velho catolicismo. O processo que culminaria no redesenho do cenário da fé seria diferente daquele que modelou a cultura no Brasil. Por tudo isso, em vez de o Brasil virar culturalmente evangélico, a religião evangélica pode bem se converter ao Brasil.”

Constituição X Bíblia

5 thoughts on “Em Defesa do Estado Laico

  1. É um fato que as religiões não serão hegemônicas no futuro, pois até 2018, praticamente 100% das pessoas do planeta estarão conectadas de alguma forma. Essa conexão é proporcionada por tecnologia que é puramente neutra, pois a ciência que produz a tecnologia não está à procura de crenças e sim de evidências cada vez mais aguçadas a respeito do próprio entendimento humano.
    Com essa torrente de informações que alcançarão uma dobra anual a partir de 2015, ou até antes disso, a própria informação funcionará como um filtro que eliminará toda e qualquer crença sem uma fundamentação em algo mais concreto. Todas as ferramentas e tecnologias de computadores desenvolvidas hoje são neutras, assim como o Google, Facebook, Linux, Android, IOS Apple, etc.
    Vejo os religiosos como crianças tentando impor um valor determinado por uma crença, mas serão todos tomados de surpresa pelo niilismo que causará uma ruptura dessa mesma crença, não tendo como superar esse trauma o único caminho será abraçar a autoconsciência que os levará para o ceticismo forçado.
    O religioso não sabe que está tentando atravessar um deserto enorme e arenoso, onde cada grão de areia significará apenas uma coisa: ou serei um chip (silício), ou deixarei de existir!

    Para saber mais acesse os temas:

    Niilismo em Nietzsche: breve abordagem: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12698
    O Universo tem um Propósito?: http://rcristo.com.br/2013/07/19/o-universo-tem-um-proposito/
    BBC Ateísmo – Uma Breve História da Descrença (recomendado): http://rcristo.com.br/2012/08/20/bbc-ateismo-uma-breve-historia-da-descrenca/

    • Prezado R. Cristo,
      lembrei-me do que meu pai, que se dizia “católico não-praticante” (nunca o vi em uma missa não obrigatória socialmente), exclamava em momento de exasperação: “Cristo, olhai para isto!” 🙂
      Eu gostava da rima…
      Os religiosos tendem a um devenir otimista. A etimologia de “devenir” é ‘tornar-se, começar a ser o que não era antes’.
      Você parece acreditar nesse devir: fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e transforma todas as realidades existentes.
      Será que também não é uma fé ou crença demasiada em TI – Tecnologia e Informação? Ela será usada, massivamente, para o bem?
      “Homens são homens. E o melhor deles esquece-se, às vezes, de que é humano” (Shakespeare).
      Na minha idade, embora não tenha nenhum para idolatrar, “louvo a todos os deuses, bebo meu vinho, e deixo o mundo ser mundo”…
      att.

  2. Olá Fernando, desculpe a franqueza (descortesia), ou talvez aparente arrogância (involuntária) desqualificadora de minha parte: vejo que, a partir dos teus escritos que li, “Economia das Religiões” não é bem a tua praia, digo expertise.
    1. Li o “Poupança: economia normativa religiosa” (TD 220 – IE/Unicamp – Junho/2012). Deparei com a insuficiência da abordagem…
    1.1. No que concerne ao “tópico” Protestante é seguro afirmar que a “sociologia religiosa” de Max Weber, ficou datada! Com o passar dos tempos “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” tornou-se um “clássico” para “explicar” “porque” o Capitalismo “desenvolveu” em Terras Protestantes e não em Nações católicas “dominadas” pelo “obscurantismo” da Igreja. Mesmo porque a “ética da ascese” é contradita pelo Principio da Demanda Efetiva (Kalechi/Keynes)…Dito isso, temos que a “exegese” de Weber não é consistente para explicar a “dinâmica” da acumulação capitalista. Enfim, o ensaio de um dos ilustres mentores da “Escola Histórica” perdeu a substância de sua hermenêutica histórica.
    1.2 Especificamente quando à “visão” católica, passastes aos largo, de análises de importante estudiosos… Se ateve ao “senso comum” disseminado por manuais de história econômica, bem ao “estilo” Léo Huberman (História da Riquezas do Homens) ou então Hunt & Sherman (História do Pensamento Econômico) que a partir de “leitura insuficiente” da Escolástica da Baixa Idade Média, mas especificamente do conceito de USURA “assumido”, mas não elaborado pelo pensamento tomista.
    2. Ao se apoiar no artigo citado para defender o Estado laico, presumo que tu “embarcastes” no “sensacionalismo de ocasião” da “análise” (esse é o “problema” dos textos “sob encomenda” para a F. São Paulo e sua renitente “linha editorial” anticlerical) do Reginaldo Prandi… será que ele “desconhece (omite? no texto) a “dinâmica” dispersiva do neopentecostalismo brasileiro, incapaz de, numa perspectiva histórica vir a ser a “mundivisão religiosa” hegemônica…
    3. O “economicismo” de seus comentários para as “metamorfoses” do ethos e do pathos religiosos são questionáveis à partir de elementos da Antropologia religiosa. Mesmo porque a “assimetria” do “mercado” religioso brasileiro não se dá pelo “corte” ignorantes (pobres) e esclarecidos (classe média), bem ao gosto do “Mapa das Religiões” do Marcelo Neri et alli (FGV-RJ). O fenômeno é mais complexo.
    4. Curioso como as “minorias” ruidosas dos “esclarecidos” (da mídia) coloca sob seus “holofotes” um representante “minoritário” do pentecostalismo, também ruidoso, que naturalmente cava mais espaços para sua visibilidade política… Os defensores do Estado laico estão “batendo” em “cachorro morto”, ou seja, no cínico e sinistro deputado Marco Feliciano.
    5. Temo que os defensores do Estado laico ao agirem como uma “minoria ruidosa” desperte a “maioria silenciosa” de cidadãos que professam e/ou tem alguma convecção religiosa… E aí, meu ver, a “evolução” para a substância de um Estado Democrático sobrestará.
    6. Seria pois mais interessante, para a democracia, se os partidários do Estado “laico” se insurgissem (sic) contra o Estado patrimonialista que alavanca a “acumulação espúria” daqueles que “vivem” à sua sombra (licitações direcionadas, desvio de recursos públicos, ineficiência alocativas, etc., tudo que fomentam a tal corrupção). Assim secaria a “seiva” que os partidários da “teologia da prosperidade” também querem sugar.
    7. Imagine se um “oportunista” colocar a questão: “por que os cidadãos de convicções religiosas devem pagar tributos ao Estado laico?”
    8. Seria pois mais interessante, para a democracia, que os partidários do Estado “laico” se insurgissem (sic) contra o Estado patrimonialista do alavanca a “acumulação espúria” daqueles que “vivem” à sua sombra. Assim secaria a “seiva” que os partidários da “teologia da prosperidade” também querem sugar.
    9. Para mão me alongar: creio que os partidários do Estado “laico” se portam como intolerantes à maioria “religiosa” da sociedade…. Estão a “cruzar” armas com o vento, à luz da Constituição brasileira de 1988. Todas as “demandas” dos laicos, em SP, RJ, RS e PR, estados onde esse debate é posto, perderam nas instâncias do Poder Judiciário. Por uma razão muito simples: a CF-1988 afirma a “laicidade” do Ente público (Estado) , face a “sociedade” de maioria religiosa, social e historicamente. De modo que a maioria religiosa da sociedade não vê o Estado laico como “inimigo”. Daí minha convicção a disputa em torno do questão “Estado laico” é dispta de minorias – pró e contra. Bom que nas democracias sobrepõem a vontade e o interesse das maiorias. Só assim as “minorias” serão protegidas, até em seus direitos (jus “sperniandi”)
    10. Imagine se um “oportunista” colocar a questão: “por que os cidadãos de convicções religiosas devem pagar tributos ao Estado laico?”
    11. Por fim, seria interessante se no teu comentário tivesse feito alusão ao debate substancial (em termos intelectual) entre o laico Jürgen Habermas e o religioso Joseph. Ratizinger.
    Um abraço fraterno.

    • Prezado César,
      você tem toda a fé (católica, protestante, evangélica, muçulmana, budista, espírita, umbandista, etc. etc.), “religião não é minha praia”… Porque é frequentada por fanáticos religiosos intolerantes com ateus!
      Sendo assim, não tive paciência para ler seu longo comentário para me desqualificar. Não precisava tanto…
      att.

      PS: depois dessa breve resposta, no dia seguinte obtive paciência. Percebi que seu comentário se alongou porque, em sua cruzada contra os “hereges da web”, copiando e colando ataque pré-fabricado, repetiu os pontos 7 e 11 que, convenhamos, é uma bobagem atroz: “por que os cidadãos de convicções religiosas devem pagar tributos ao Estado laico?” A resposta é óbvia: porque eles desfrutam de serviços públicos!

      Outros pontos repetidos: 6 e 8. Nesse caso, você mistura fé religiosa com crença neoliberal. Aliás, no meu Texto para Discussão citado, o que eu queria demonstrar era isso mesmo: essa mistura de dogmas.

      Você propõe os sociólogos abandonarem a leitura de Weber para lerem a bíblia?!

      Pelo dito, com preconceito, você não entendeu nada da minha releitura de Weber. Não foi para “explicar porque o Capitalismo desenvolveu em Terras Protestantes e não em Nações católicas dominadas pelo obscurantismo da Igreja”. Foi para usar o seu argumento que depois vi também o Reginaldo Prandi utilizando de maneira parecida: “Igrejas pentecostais pregavam uma ética de afastamento do mundo, com profundas restrições ao consumo. Ao preconizar vida simples e despojada, ofereciam um modelo ideal de conduta para uma classe proletária então destinada a ganhar mal e comprar pouco. Quando a âncora da economia muda do trabalhador que produz para o consumidor (garantidor do crescimento), o pentecostalismo tem de rever sua posição sobre o consumo, até então encarado como ponte para o mundanismo.”

      A diferença da minha argumentação é que a louvação protestante de conformismo com “a poupança” deixa de ser útil em uma economia de endividamento com crédito. Evidentemente, esta corresponde ao dito por Kalecki e Keynes.

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