O Nascimento de uma Nação Racista e a Conquista dos Direitos Civis pelos Afroamericanos

Rodrigo Suzuki Cintra é filósofo e doutor em direito pela USP, leciona na Universidade Mackenzie. Publicou belo artigo-resenha cinematográfica, propiciando conhecimento sobre a História do Cinema e ilustrando as práticas da direita racista. É interessante contrapor o filme “O Nascimento de Uma Nação” ao filme recente “Selma” (2014), que registra os 50 anos de uma conquista real da cidadania: o direito ao voto dos afrodescendentes nos EUA.

Em outros termos, esse direito político só foi conquistado, nos EUA, 100 anos após o fim da Guerra Civil, quando houve lá a extinção da escravidão!

O filme Selma mostra os bastidores da marcha das cidades de Selma até Montgomery, no Alabama, em 1965. O episódio é um momento crucial na luta pelo direito de voto dos negros nos EUA, que não era plenamente garantido até então. “Selma” mostra bem a dificuldade de conciliação das muitas posições antagônicas de cada grupo no evento: governo federal (o texano presidente Lyndon Johnson sucessor de John Kennedy), estadual (o racista George Wallace do Alabama), polícia conservadora local, população racista do Alabama, brancos progressistas que aderiram à luta, movimentos negros que defendiam a violência (Malcom X e os Panteras Negras) e especialmente os ativistas liderados por Martin Luther King Jr.. Foram muitas pequenas vitórias e derrotas até a marcha triunfante.

“O discurso começa mal e termina pior. No entanto, é filme genial e uma das maiores referências da história do cinema. “O Nascimento de uma Nação“, do diretor americano D. W. Griffith (1875-1948), completa cem anos e ainda dá o que falar. A questão gira em torno de uma dupla constatação. Formalmente, do ponto de vista estritamente técnico, o filme é absolutamente inquestionável como referência para a linguagem cinematográfica. Porém, o conteúdo da história narrada é altamente problemático: trata-se de um filme racista.

O Nascimento de uma Nação” é um drama de guerra épico, mudo, em preto e branco, com mais de três horas de duração. Não poderia ser sucesso de bilheteria em nossos tempos. No entanto, mais de 1 milhão de pessoas viram o filme em seu lançamento – foi o “blockbuster” de sua época. Verdadeiro acontecimento, o filme de Griffith foi o primeiro grande longa-metragem americano da história.

A impressão que causou em suas exibições em 1915 foi de impacto. Ainda é, aliás. Griffith inovou ao reunir, pela primeira vez em um longa, experiências de linguagem que vinham sendo desenvolvidas em curtas e médias- metragens de diferentes diretores, porém de forma descentralizada. A verdade é que Griffith foi o grande arquiteto da distinção entre cinema e teatro por sistematizar essas inovações e estabelecer um modo específico de narrar.

A estrutura da maioria dos filmes até “O Nascimento de uma Nação” seguia a lógica simples de filmar uma cena montada teatralmente. A câmera pouco se movia, os atores eram filmados de corpo todo, a sequência dos fatos narrados era encadeada sem cortes. O que fez Griffith? Ajudou a definir uma gramática para o cinema e, ao efetuar a distinção entre linguagem cinematográfica e teatral, contribuiu para a concepção de que o cinema é uma arte autônoma.

Os atores não entendiam bem as ideias de Griffith. Oriundos do teatro, suspeitavam da lógica do close facial, por exemplo. Ao utilizar esse recurso, o diretor não apenas rompia com a tradição, mas estabelecia um modo de apresentar personagens com uma dramaticidade mais vigorosa. Griffith também foi um dos pioneiros no modo como utilizou a câmera. Retirou-a de sua inércia, fruto de uma concepção de cinema-teatro, e a colocou em movimento. O resultado foi um dos primeiros “travellings” da história.

Em “O Nascimento de uma Nação” podemos ver cortes rápidos, que imprimem um ritmo mais dinâmico para a história e contribuem para a sensação de suspense. A montagem do filme aprofundava inovações do diretor Edwin S. Porter (1870-1941) no curta-metragem “O Grande Roubo de Trem” (1903), como a narrativa paralela, em que cenas externas de personagens no veículo em movimento são intercaladas com cenas de personagens no interior, sugerindo que as ações ocorrem ao mesmo tempo.

Em “O Nascimento de uma Nação“, o modo como se organiza a sequência das imagens ganha, com a inventividade e o aprimoramento de Griffith, uma função narrativa. O russo Sergei Eisenstein (1898-1948), o maior gênio da história da montagem, afirmou sobre Griffith: “Não existe um cineasta no mundo que não lhe deva alguma coisa […] Quanto a mim, eu lhe devo tudo”.

O filme começa, logo após anunciar aversão à guerra, com os seguintes letreiros: “A vinda forçada dos africanos para a América plantou a primeira semente da discórdia”. O problema é que, com essa afirmação, a tônica que veremos não é a desgraça da “vinda forçada dos africanos”, mas sim a culpa dos negros pela “primeira semente da discórdia”.

“O Nascimento de uma Nação” trata da questão da guerra civil americana por meio do drama de duas famílias, uma do Norte, os Stoneman, e outra do Sul, os Cameron. Phil Stoneman se apaixona por Margaret Cameron e, subitamente, a guerra chega. Na primeira parte, o filme mostra, de maneira realista, acontecimentos que vão até o assassinato do presidente Abraham Lincoln (1809-1865). Na segunda parte, mostra e elogia a formação da organização racista Ku Klux Klan.

Quando da exibição do filme, a guerra civil era recente para os americanos – ela ocorrera 50 anos antes. O conteúdo do filme já era polêmico desde o lançamento, se bem que nunca fora questionado em sua técnica. “O Nascimento…” não era um filme que mirava para o futuro, problematizando a questão racial. Era, sem sombra de dúvidas, um filme que mirava o passado e correspondia, qual espelho de época, a uma sociedade americana plenamente racista. Se houve indignação por parte das associações de negros, por outro lado, o sucesso do filme também tinha algo a ver com um público preconceituoso.

Basta lembrar uma das cenas de maior impacto: Flora Cameron, ao acreditar que um homem negro está prestes a estuprá-la, se joga de um precipício e acaba morta nos braços de seu irmão mais velho.

É claro que Griffith, pessoalmente, negava ser adepto de ideias racistas. A acusação o perseguiu por toda a vida. Tanto que, em 1916, dirigiu o filme “Intolerância“, um ataque ao preconceito. Apesar de ser intitulado como o “pai do cinema”, sua carreira foi perdendo o brilho com o passar dos anos: ele morreu esquecido.

Talvez alguns achem curioso ou lamentável o fato de que o primeiro longa-metragem realmente importante americano e inovador da história do cinema seja racista. Isso, porém é sintomático. O grande cinema americano herdou essa dimensão preconceituosa. “O Nascimento de uma Nação” contém elementos de um racismo plenamente visível. É preciso ser cego para não enxergar, no simples fato de que os atores eram todos brancos e que, para representar os negros, pintavam seus rostos, indícios evidentes do preconceito.

O cinema americano produziu uma longa série de “blockbusters” também preconceituosos, após o filme de Griffith. Pode-se dizer que se trata de uma forma artística, um “modus operandi”, que contém em sua essência uma visão preconceituosa de mundo. Nesse sentido, poderíamos nos lembrar dos filmes de faroeste, que colocam os índios no papel de vilões inegáveis. Também é o caso de muitos filmes sobre o perigo comunista que nunca problematizam a questão política, apenas mostram as crueldades dos malfeitores vermelhos. Recentemente, filmes sobre o terrorismo não fogem à regra ao colocar o muçulmano sempre como um radical incorrigível, insensível e maldoso.

Criticar o filme de Griffith como racista, esquecendo-se do conteúdo preconceituoso dos filmes americanos de hoje, é uma das dificuldades do olhar. O preconceito americano para com o diferente ainda está presente de maneira profunda em suas produções de maior bilheteria. A questão é que não está de um modo abertamente visível. As técnicas de narrar do cinema americano não podem ser separadas de uma visão de mundo racista e preconceituosa. O grande cinema americano sempre esteve a serviço de um projeto – e esse nunca foi particularmente igualitário.”

O Nascimento de uma Nação Racista

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