A Economia em Machado de Assis: O Olhar Oblíquo do Acionista

A Economia em Machado de Assis

Machado de Assis escreveu cerca de seiscentas crônicas entre 1883 e 1900, muitas delas publicadas em jornais da época e que trataram de temas importantes como a Abolição da Escravatura, o Encilhamento e a Proclamação da República. A partir desse material historiográfico, o economista e ex-presidente do Banco Central, Gustavo H.B. Franco, produziu uma seleção inédita de textos do escritor, que tratam de temas econômicos e financeiros da época.

Além da seleção, Franco introduz e comenta os textos de Machado, contextualizando os fatos que ganharam a atenção e o olhar do cronista. A Economia em Machado de Assis é, assim, uma contribuição historiográfica que oferece a chance de visitar o passado econômico brasileiro, na passagem do século XIX para XX, com a companhia de um dos grandes escritores da literatura mundial e um dos economistas cultos do país.

Leia como exemplo da ironia e da crítica de costumes sociais de sua época uma crônica de Machado de Assis publicada em 4 de julho de 1883. Mutatis mutandis (mudando o que tem de ser mudado), adapta-se ao nosso tempo de uso (e abuso) mal-educado dos celulares em espaços públicos…

Os primeiros bondes sobre trilhos, a tração animal, foram introduzidos no Rio de Janeiro pela Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico, em 1868. Na crônica de “A Semana” de 6 de agosto de 1893, incluída na antologia escolhida por John Gledson (São Paulo: Penguim-Companhia das Letras; 2013), Machado explica a revolução social que operaram, dando uma liberdade maior às mulheres e forçando à convivência mais “democrática”, para usar um adjetivo desta mesma crônica. Aqui, em tom de comédia, aparece o lado negativo desta revolução.

Bala de Estalo

Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que frequentam bondes. O desenvolvimento que tem tido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

art. i

Dos encatarroados

Os encatarroados podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.

Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.

Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação etc. etc.

art. ii

Da posição das pernas

As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.

art. iii

Da leitura dos jornais

Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.

art. iv

Dos quebra-queixos

É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.

art. v

Dos amoladores

Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

art. vi

Dos perdigotos

Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.

art. vii

Das conversas

Quando duas pessoas, sentadas à distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

art. viii

Das pessoas com morrinha

As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

art. ix

Da passagem às senhoras

Quando alguma senhora entrar o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.

art. x

Do pagamento

Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.

Leia mais:

FRANCO, Gustavo. A Economia em Machado de Assis

A Economia em Machado de Assis

ASSIS, Machado de. Crônicas

Obra Completa de Machado de Assis

4 thoughts on “A Economia em Machado de Assis: O Olhar Oblíquo do Acionista

  1. É cada vez maior a lista de economistas acadêmicos que se incursionam pela literatura, não somente por diletantismo, mas “procurando” nas Letras explicações que a pretensa “ciência econômica” desde há muito tempo se mostra incapaz. Os mais visíveis são os conservadores Eliana Cardoso e Gustavo Franco e o liberal (progressista) Fernando Nogueira da Costa.

    Isso me faz lembrar uma “passagem” do romance Amanuense Belmiro, do escritor mineiro Cyro dos Anjos quando alude ao abandono de “estudar letras agrárias”. Infelizmente não estou com um exemplar do romance à mão para citá-lo com rigor, mas se a memória não me falha a “passagem é: “eu abandonei letras agrícolas e me envolvi com outras letras que infelizmente não me levam a lugar algum.

    O romance não versa sobre o ofício de economistas, mas cabe analogia, pois esse é o “sentimento” daqueles que conheço (no “mundo das consultorias” e “mercado de capitais”) que dedicaram muito tempo a estudar a”ciência triste” e se sentem angustiado com o ofício diário da “análise econômica”, pois na prática desses profissionais a Economia é a menos relevante das “formas de conhecimento”.

    Ademais não é de se surpreender que por mais que se esperneiem metodologicamente os economistas acadêmicos não se desvencilham do “vicio ricardiano”. Alguns, prudentemente faz a ressalva de evitar o “automatismo” da teoria à pratica.

    Há um bom tempo que a demanda por cursos universitários de Economia é declinante. Ademais, vemos todos os dias/noites nas mídias “pretensos” economistas a deitar falação sobre o “mercado” dominado pela “oligarquia financeira” que a tudo e a todos (indiretamente) controlam e nada explicam, pois a Economia “virou” instrumento de desinformação. Tudo isso é de se lamentar.

    • Prezado César Rocha,
      talvez a frase de Joan Robinson resuma um contra-argumento à sua argumentação: “deve-se estudar Economia para não ser enganado pelos economistas”. Corrigindo-o, eu diria: “(alguns) economistas viraram instrumentos de desinformação”.

      Gosto de estudar Economia porque aprecio entender a realidade. Foi realizada a repartição do conhecimento desta em Ciências Afins. Por isso, é necessário o esforço de reunir os conhecimentos multidisciplinares.

      A arte, seja a literária, seja a cinematográfica, ou mesmo a teatral, representa de maneira criativa a realidade através de personagens ou protagonistas que são múltiplos. Analisar suas decisões sob o ponto de vista econômico, comparando-o com outros apelos emocionais, psicológicos, políticos, sociais, etc., dá realismo face à abstração da teoria econômica.

      A elaboração de bons roteiros e belos textos exige conhecimentos interdisciplinares.
      att.

  2. A interdisciplinaridade da Economia é que impressiona. Na versão estrangeira do livro “Conversas com Economistas” um dos entrevistados, não me lembro qual, diz que decidiu se embrenhar no estudo desta área do conhecimento pelo fato de, num momento aleatório, ter aberto um livro de Walras ou de Keynes e, surpreendentemente, não ter entendido quase nada – logo ele que se achava tão inteligente.

    Em relação ao comentário do César Rocha, que disse “‘procurando’ nas Letras explicações que a pretensa ‘ciência econômica’ desde há muito tempo se mostra incapaz”, eu sugeriria como resposta a leitura da entrevista que Celso Furtado deu na versão brasileira do livro “Conversas com Economistas Brasileiros”, principalmente a passagem em que ele diz “é fundamental habituar-se aos clássicos, entre eles, Platão, Marx, Rousseau, Kafka…”; este último é literato e os outros três podem ser considerados filósofos.

    Os cursos de Economia estão em extinção pois não se sabe onde exatamente empregar um economista – somente os grandes cargos lhes cabem, como, por exemplo, Ministro da Fazenda, Diretor do BACEN, Presidente da República, Filósofo Universal e por aí vai.

    Att,
    Diego Araújo.

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