Evolução Histórica da Desigualdade no Tempo e no Espaço

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Leia: Informe Oxfam 210 – A Economia para o um por cento – Janeiro 2016 – Relatório Completo

Thomas Piketty, em seu livro “A economia da desigualdade” (Rio de Janeiro;  Intrínseca; 2014 – original de 1997), pergunta: “será que poderíamos considerar desprezíveis as diferenças de salário ou de renda de um a três ou de um a quatro entre o limite superior dos 10% mais pobres e o limite interior dos 10% mais ricos vivendo no mesmo momento num mesmo país se comparadas à desigualdade que separa um ocidental de 1990 de um ocidental de 1900 ou de um indiano de 1990?“

A Tabela acima retrata os poderes de compra médios de um operário e de um alto executivo na França de 1870 a 1994, mensurados em francos de 1994, isto é, levando em conta a evolução do custo de vida.

É evidente que esses números devem ser vistos com precaução: à medida que retrocedemos no tempo, a própria ideia de um índice sintético do custo de vida torna-se problemática, tendo em vista as mudanças nos estilos de consumo. Em contrapartida, as ordens de grandeza podem ser consideradas significativas: entre 1870 e 1994, o poder de compra de um operário foi multiplicado por aproximadamente oito.

Na verdade, essa progressão espetacular dos padrões de vida durante o último século capitalista ocorreu em todos os países ocidentais. Por exemplo, o salário-hora de um operário nos Estados Unidos foi multiplicado por onze entre 1870 e 1990 — um aumento médio de cerca de 2% ao ano [Duménil e Lévy, 1996, Capítulo 15], que corresponde mais ou menos ao aumento na França, levando-se em conta a redução do tempo anual de trabalho.

Essa diferença de um a dez entre o ocidental de 1870 e o ocidental de 1990 é equivalente, ou mesmo ligeiramente inferior, à diferença entre a renda média de um chinês ou indiano de 1990 e a renda média de um ocidental de 1990, segundo as melhores estimativas disponíveis em matéria de paridade de poder de compra [Drèze e Sen, 1995, p. 213].

As diferenças em termos de PNB (Produto Nacional Bruto) por habitante, que são em geral quatro ou cinco vezes mais altas, não têm muita utilidade efetiva, pois são expressas pela taxa de câmbio em vigor para as moedas ocidentais, o que mede muito mal as diferenças reais de poder de compra. Uma diferença de um a dez entre o padrão de vida médio dos países mais ricos e o padrão de vida médio dos países mais pobres é sem dúvida mais próxima da realidade.

Em suma, podemos afirmar que a desigualdade entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres de um país, que pode ser mensurada por uma razão P90 / P10 da ordem de 3-4, é cerca de duas a três vezes inferior à desigualdade dos padrões de vida no tempo entre o fim do século XIX e o fim do século XX e à desigualdade no espaço entre os países ricos e os países pobres. Essas duas formas de desigualdade não são, portanto, incomparáveis, embora uma seja incontestavelmente mais elevada que a outra.

O que podemos dizer quanto às diferenças de um a 3-4 entre ricos e pobres de um mesmo país, ou de um a dez entre países ricos e países pobres? Estão fadadas a permanecer as mesmas, aumentar ou diminuir?

Para Marx e os teóricos socialistas do século XIX, embora não quantificassem a desigualdade dessa forma, a resposta não suscitava qualquer dúvida: a lógica do sistema capitalista é alargar incessantemente a desigualdade entre duas classes sociais opostas, os proletários e os capitalistas, e isso tanto no âmbito dos países industrializados como entre países ricos e países pobres.

Essas previsões foram logo contestadas dentro da própria corrente socialista. A tese da proletarização não resiste, escreve Bernstein nos anos 1890, uma vez que, ao contrário, observamos que a estrutura social se diversifica e que a riqueza se dissemina em camadas cada vez mais amplas da sociedade.

Entretanto, somente após a Segunda Guerra Mundial se tornou de fato possível constatar a queda da desigualdade dos salários e das rendas nos países ocidentais a partir do século XIX, o que deu origem à formulação de novas previsões. A mais célebre foi a de Kuznets [1955]: segundo ele, a desigualdade tende a desenhar uma curva em  U invertido ao longo do processo de desenvolvimento, com uma primeira fase de desigualdade crescente causada pela industrialização e pela urbanização das sociedades agrícolas tradicionais, seguida por uma segunda fase de estabilização e depois de redução substancial da desigualdade.

Essa tendência de aumento da desigualdade no século XIX e então de queda a partir da segunda metade do século XIX foi particularmente bem estudada no caso do Reino Unido [Williamson, 1985] e dos Estados Unidos [Williamson e Lindert, 1980]. No último caso, observamos, por exemplo, que a parcela do patrimônio total detido pelos 10% mais ricos passou de cerca de 50% por volta de 1770 para um máximo de aproximadamente 70-80% no fim do século XIX, antes de voltar, em 1970, a um nível da ordem de 50%, típico da desigualdade contemporânea entre patrimônios. As fontes disponíveis sugerem que o mesmo tipo de fenômeno ocorreu em todos os países ocidentais.

Todavia, as pesquisas mais recentes realizadas na França e nos Estados Unidos [Piketty, 2001; Piketty e Saez, 2003; Landais, 2007] mostram que essa forte redução da desigualdade observada ao longo do século XX não é de forma alguma consequência de um processo econômico “natural”. Ela diz respeito exclusivamente à desigualdade dos patrimônios (a hierarquia dos salários não manifesta tendência a queda no longo prazo) e é decorrente dos choques sofridos entre 1914 e 1945 pelos detentores de patrimônios (guerras, inflação, crise dos anos 1930). A partir de então, a concentração das fortunas e das rendas do capital nunca voltou ao nível astronômico que as caracterizava às vésperas da Primeira Guerra Mundial.

A explicação mais verossímil envolve a revolução fiscal que marcou o século XX. Com efeito, o impacto do imposto progressivo sobre a renda (criado em 1914) e do imposto progressivo sobre as heranças (criado em 1901) na acumulação e na transmissão de patrimônios importantes parece ter evitado o retorno à sociedade de rentistas do século XIX.

Se as sociedades contemporâneas se tornaram sociedades de executivos, isto é, sociedades cujo topo da distribuição é dominado por indivíduos que vivem sobretudo das rendas do trabalho (e não mais por aqueles que viviam principalmente das rendas de um capital acumulado no passado), tal reviravolta foi causada acima de tudo por essas circunstâncias históricas e instituições específicas. Longe de ser o fim da história, a lei de Kuznets é produto de uma história singular e reversível.

Mas foi sobretudo a constatação, nos anos 1980, de que a desigualdade voltara a aumentar nos países ocidentais a partir dos anos 1970 que lançou o golpe de misericórdia na ideia de uma curva em U invertido, ligando inexoravelmente desenvolvimento e desigualdade. Essa reversão da curva de Kuznets marca o fim das grandes leis históricas sobre a evolução da desigualdade, ao menos durante certo tempo, induzindo a uma análise modesta e minuciosa dos mecanismos complexos capazes de promover o aumento ou a redução da desigualdade em diferentes períodos.

Embora só tenha aumentado de fato nos Estados Unidos e no Reino Unido, em todos os países a desigualdade salarial no mínimo parou de cair durante os anos 1980. Isso distingue os países ocidentais dos países menos desenvolvidos, onde nenhuma tendência desse tipo foi detectada [Davis, 1992].

Nos Estados Unidos, a razão P90 / P10 entre os 10% menos bem pagos e os 10% mais bem pagos cresceu cerca de 20% entre 1970 e 1980, depois outra vez mais ou menos 20% entre 1980 e 1990 — um aumento total de aproximadamente 50% no período. Dado o ritmo habitualmente lento de distorção das desigualdades salariais, esse valor é considerável e reconduz os Estados Unidos ao nível de desigualdade salarial do período entreguerras [Goldin e Margo, 1992]. Consequência lógica dessa evolução, a desigualdade dos patrimônios, que diminuíra até 1970, parece ter retomado uma curva ascendente [Wolff, 1992].

O caso do Reino Unido é bem diferente, uma vez que lá a desigualdade dos salários era muito baixa em 1970 — bem próxima dos níveis escandinavos — e que, após um ligeiro crescimento durante a segunda metade dos anos 1970, a razão P90 / P10 aumentou cerca de 30% entre 1980 e 1990, de modo que nos anos 1990 o Reino Unido juntou-se aos Estados Unidos no pelotão de frente da desigualdade.

Nos países nórdicos, a desigualdade permaneceu nos níveis anteriores, com razões P90 / P10 da ordem de 2-2,5, apesar de uma leve tendência a aumentar.

O caso da França é bastante específico, uma vez que a desigualdade dos salários franceses foi a mais alta do mundo ocidental em 1970, antes de diminuir rapidamente durante a década de 1970 e se estabilizar nos anos 1980 e 1990, com um ligeiro aumento a partir de 1983-1984, de forma que a razão P90 / P10 alcançara 3,1 em 1984, antes de subir para 3,2 durante o período 1984-1995 [INSEE, 1996a, p. 48].

Portanto, foi apenas durante os anos 1970 que os salários americanos passaram a ser distribuídos de maneira mais desigual do que os franceses, ao passo que o Reino Unido teve de esperar o fim dos anos 1980 e os anos 1990 para ultrapassar a França ligeiramente no panteão da desigualdade.

Ainda que o nível de desigualdade inicial fosse nitidamente menos elevado, a história italiana da desigualdade dos salários dos anos 1970-1990 é bastante semelhante à francesa, já que, após uma ligeira queda nos anos 1970 e no início dos 1980, a razão P90 / P10 começou a subir a partir de 1984 [Erickson e Ichino, 1995].

Não deveríamos reduzir toda a evolução da desigualdade das rendas a uma simples tradução mecânica da evolução da desigualdade dos salários, ainda que essa seja incontestavelmente a principal força em jogo [Gottschalk, 1993]. Por exemplo, quase metade do crescimento da desigualdade das rendas das famílias americanas entre 1970 e 1990 deve-se, na realidade, ao aumento da correlação das rendas entre membros de uma mesma família — isto é, ao fato de que as rendas elevadas se casam cada vez mais com rendas elevadas, ao passo que as famílias mais pobres em geral são constituídas por mães solteiras [Meyer, 1995].

Além disso, e sobretudo, os países ocidentais conduziram de maneiras diferentes a progressividade de seus sistemas de tributações e transferências desde os anos 1970: ao mesmo tempo que as políticas adotadas pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido tendiam a agravar o aumento da desigualdade dos salários, nos demais países essas mesmas políticas permitiram controlar o quadro de desigualdade.

Uma comparação particularmente impressionante foi feita entre os Estados Unidos e o Canadá: enquanto os mercados de trabalho e a desigualdade dos salários desses países evoluíam de maneira semelhante, a razão P90 / P10 das rendas das famílias permaneceu estável em aproximadamente quatro no Canadá e passou de 4,9 a 5,9 nos Estados Unidos [Atkinson et al., 1995, p. 47]. Os fatores por trás disso são complexos, mas boa parte do fenômeno pode ser atribuída às diferenças de políticas fiscais e sociais adotadas em cada país.

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2 thoughts on “Evolução Histórica da Desigualdade no Tempo e no Espaço

  1. talvez acrescente, uma pulga nas orelhas:

    – Nicky Hilton, herdeira da dinastia Hilton, e James Rothschild, herdeiro de uma das mais ricas famílias de banqueiros da Europa, esperam uma herdeirinha que já nascerá com o nome entre os mais ricos do mundo.

    – No Brasil, enquanto a esmagadora maioria de trabalhadores consegue receber aproximadamente mil reais por pessoa ao mês, há uma outra faixa que varia entre os 5 e 30 mil por mês, e uma minoria de mega empresários que lucra mais de cem mil por mês… pra pensar.

    – No relatório global da Oxfam 2016, há gráficos e previsões de que a situação ainda vai piorar, pois os ricos estão cada vez mais ricos, e os pobres cada vez mais pobres em todas as regiões do mundo. Apresentando pesquisas do Credit Suisse.

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