Qual é o Problema da Economia da Felicidade?

Grandes moralistas disseram-nos vezes sem conta que a felicidade está no amor e na virtude, não na riqueza. A novidade da Economia da Felicidade é a tentativa de embelezar esta antiga sabedoria com um invólucro estatístico ao qual não faltam gráficos e fórmulas. Aparentemente, não podemos admitir que sabemos o que sabemos sem considerar que essa sabedoria seja validada pela Ciência.

Este exercício de autoconfiança é perigoso por dois motivos:

  1. exagera a utilidade dos inquéritos sobre felicidade e
  2. requer que atribuamos um valor incondicional à felicidade em si, independentemente das várias coisas que nos fazem felizes.

Robert Skidelsky e Edward Skidelsky, no livro “Quanto é Suficiente? – O Amor Pelo Dinheiro e a Economia da Vida Boa”, analisam cada um destes dois erros separadamente. Inicialmente, focalizam os problemas de medição da felicidade:

  • ou a felicidade é extremamente insensível às mudanças no ambiente social,
  • ou as medições de felicidade são extremamente insensíveis às mudanças de felicidade.

Nenhuma destas conclusões é particularmente reconfortante para os economistas da felicidade.

Há motivos para pensar que o problema se prende com a forma como a felicidade é medida. Gráficos são compilados com dados de um inquérito em que os inquiridos tinham de se caracterizar como (4) «muito satisfeitos», (3) «relativamente satisfeitos», (2) «não muito satisfeitos» e (1) «nada satisfeitos». Como a média inicial em determinado ano foi de 3,15 em um máximo de 4, a felicidade podia ter subido 28% no máximo durante este período, três a quatro vezes menos do que o PIB. Mas mesmo este aumento modesto teria implicado que uns surpreendentes 100% dos habitantes se declarassem “muito satisfeitos”.

Além disso, inquéritos “limitados”, isto é, com base em quantificar supostos limites qualitativos, como este não podem registar alterações nas duas extremidades do espectro. Não podem representar uma situação em que, digamos, os 10% mais felizes se tornam ainda mais felizes, uma vez que essas pessoas já estão na categoria superior de “muito felizes”.

Em contraste, se os 10% mais ricos ficarem ainda mais ricos, o efeito no rendimento nacional pode ser alterado pelo valor agregado. Em suma, o contraste divulgado entre a felicidade estática e o PIB em elevação não passa, provavelmente, de uma consequência da forma como as duas coisas são medidas.

Outros inquéritos sobre felicidade usam uma escala numérica de 10 ou 11 pontos. Aos inquiridos são feitas perguntas como: “Avaliando tudo em uma escala de 0 a 10, como quantificaria a sua felicidade?”. Esses inquéritos são ligeiramente mais sensatos do que o inquérito verbal descrito acima, mas criam mais problemas específicos. As categorias “muito feliz”, “bastante feliz” e “não muito feliz”, apesar de não exatas, são pelo menos eloquentes. Mas o que significará pontuar 7 em 10 para felicidade? Mesmo se presumirmos, com boa vontade, que faz sentido atribuir valores cardinais a estados de espírito, não temos as informações necessárias para tal tarefa.

Em primeiro lugar, o que representam os dois extremos? Zero representará querer se matar? Dez será um estado de felicidade perfeita?

Beatitude tem cinco significados de acordo com distintas conotações espirituais ou religiosas:

  1. estado de espírito caracterizado por total contentamento da pessoa que alcançou o bem supremo;
  2. estado de felicidade plena daquele que usufrui a presença de Deus, alcançado somente na vida eterna;
  3. felicidade suprema de quem se absorve em contemplações místicas;
  4. estado de placidez ou tranquilidade adquirido mediante contemplação da beleza natural;
  5. alegria exagerada ou exaltação próprias de determinados estados patológicos ou por consequência do uso de entorpecentes.

E quanto ao cinco? Designa um estado intermédio entre os dois extremos? Ou um estado de indiferença emocional? Estes dois estados não são necessariamente a mesma coisa; a dor absoluta pode ser mais dolorosa do que o prazer absoluto é aprazível.

Ou referir-se-á o cinco à felicidade média? Claramente, muitos criadores de inquéritos interpretam os resultados dessa forma, daí a surpresa por uma vasta maioria se classificar em seis ou acima.

E se cinco se refere à felicidade média, qual é a população de referência? A nação? O mundo? Os inquiridos nos inquéritos sobre felicidade não são esclarecidos em relação a nenhuma destas dúvidas.

No caso das comparações internacionais, os problemas multiplicam-se. Uma dificuldade é que as expressões de felicidade são extremamente convencionais, com protocolos que variam de nação para nação.

Se diferentes nacionalidades diferem apenas na forma como expressam a sua felicidade, então um questionário privado poderá esclarecer a questão, mas se diferem na forma como apreendem a sua própria felicidade então inquérito algum, por muito bem conduzido que seja, poderá revelar os seus verdadeiros sentimentos. Os investigadores da felicidade fecham os olhos a esta segunda possibilidade. Eles supõem que as pessoas sabem até que ponto são felizes, ou pelo menos que os erros de otimismo e pessimismo estão equitativamente distribuídos pelo globo.

Será que os níveis elevados de felicidade na América e em outras nações ocidentais revelam apenas a prevalência de “pensamento positivo”uma forte determinação cultural de prevalecer o olhar para o lado bom da vida?

Além disso, a maior parte das nações ocidentais contêm grandes minorias não ocidentais, constituídas de colônias de imigrantes, muitas vezes concentradas em determinados escala socioeconômica. Os preconceitos culturais – conceito ou opinião formados antes de ter os conhecimentos necessários sobre um determinado assunto, ou seja, atitude emocionalmente condicionada, baseada em crença, opinião ou generalização, determinando simpatia ou antipatia para com indivíduos ou grupos – podem, por conseguinte, comprometer a exatidão não apenas dos inquéritos internacionais, mas também dos inquéritos nacionais.

Depois, há o problema da tradução. Os investigadores da felicidade podem partir do princípio de que a palavra “felicidade” tem sinônimos ou quase sinônimos em várias línguas em todo o globo. Caso contrário, as comparações não têm sentido.

De uma maneira geral, happy em inglês é um termo muito mais leve e menos exigente que os seus equivalentes estrangeiros – isto reflete talvez a influência do utilitarismo nas culturas anglo-saxônicas.

2 thoughts on “Qual é o Problema da Economia da Felicidade?

  1. Prezado Fernando,

    a análise da felicidade está mais relacionada com dados estatísticos do que com a vida privada de cada um. Para mim a felicidade é o equilíbrio entre a qualidade de vida, saúde, e aquisição de conhecimento. As pessoas conceituam o momento de descontração e paz de espírito como situações que levam à felicidade. Entretanto, há equívocos monumentais, principalmente para aqueles que pensam que as respostas estão do outro lado da vida, algo inexistente, impossível de ser experienciado.

    Poder contemplar a vida em toda sua plenitude, tendo saúde, disposição e principalmente estar munido de um profundo conhecimento com relação ao cosmos e nossa posicionalidade (consciente dessa perspectiva), aumenta a possibilidade de sermos felizes.

    Cada cidadão do planeta hoje tem acesso gratuito e ilimitado a todo conhecimento humano de forma instantânea, basta apenas ter vontarde de aprender. Talvez o que mais importa é manter a mente aberta para as possibilidades. Nossa galáxia é enorme contendo trilhões de planetas, imagine as civilizações, mas o pensamento não pode ser limitado. Abs.

    • Prezado Reinaldo,
      estou resenhando a crítica que os economistas da felicidade receberam dos defensores da boa vida.

      Felicidade não é apenas um sentimento psicológico interior, mas uma atitude, uma perspectiva da realidade: é a percepção de que isto ou aquilo está acontecendo.

      Os críticos se perguntam: por que não admitir diretamente que a nossa preocupação é com a vida boa – e deixar a felicidade surgir por si mesma?

      Para obter uma vida boa, são essenciais os sete bens básicos para todos:
      Saúde,
      Segurança,
      Personalidade,
      Respeito,
      Harmonia com a Natureza,
      Amizade,
      Lazer.

      Personalidade se refere à capacidade de estruturar e executar um plano de vida que reflete os gostos, o temperamento e o conceito pessoal de bem: autonomia ou razão prática. Implica, portanto, um elemento de espontaneidade, individualidade e engenho, onde se inclui a aquisição de conhecimentos.

      Implica também a propriedade de um espaço privado, onde o indivíduo tem a liberdade de ser ele próprio.
      abs

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