Da Abolição da Propriedade

O imaginado interlocutor de Thomas Morus, autor da Utopia (1516), em sua Parte I, diz:

“Agora, caro Morus, vou revelar-vos o fundo de minha alma, e dizer-vos, os meus pensamentos mais íntimos. Em toda a parte, onde a propriedade for um direito individual, onde todas as coisas se medirem pelo dinheiro, não se poderá jamais organizar nem a justiça nem a prosperidade social, a menos que denomineis justa a sociedade em que o que há de melhor é a partilha dos piores, e que considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a fortuna pública é a presa de um punhado de indivíduos insaciáveis de prazeres, enquanto a massa é devorada pela miséria.

Também, quando comparo as instituições utopianas com as dos outros países, não me canso de admirar a sabedoria e a humanidade de uma parte, e deplorar, da outra, o desvario e a barbaria.

Na Utopia, as leis são pouco numerosas. A administração distribui indistintamente seus benefícios por todas as classes de cidadãos. O mérito é ali recompensado e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional é tão igualmente repartida que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida.

Alhures, o princípio do teu e do meu é consagrado por uma organização cujo mecanismo é tão complicado quão vicioso. Há milhares de leis, e que ainda não bastam para que um indivíduo possa adquirir uma propriedade, defendê-la e distingui-la da propriedade de outrem. A prova é o número infinito de processos que surgem todos os dias e não terminam nunca. Quando me entrego a esses pensamentos, faço inteira justiça a Platão e não me admiro mais que ele tenha desdenhado legislar para os povos que não aceitam a comunidade dos bens.

Esse grande gênio previra facilmente que o único meio de organizar a felicidade pública, fora a aplicação do princípio da igualdade. Ora, a igualdade é, creio, impossível num Estado em que a posse é particular e absoluta, porque cada um se apoia em diversos títulos e direitos para atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de um reduzido número de indivíduos que deixam aos outros apenas indigência e miséria.

Muitas vezes até a sorte do rico deveria caber ao pobre. Não há ricos avaros, imorais, inúteis, e pobres simples, modestos, cujo engenho e trabalho trazem proveito ao Estado mas não o trazem a si mesmos?

Eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade do gênero humano, é a abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a esse mais numerosa e mais estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos.

Sei que existem remédios que podem aliviar o mal, mas estes remédios são impotentes para curá-lo. Por exemplo: decretar um máximo de posse individual em terras e dinheiro. Premunir-se por meio de severas leis contra o despotismo e a anarquia.

Denunciar e castigar a ambição e a intriga. Não traficar as magistraturas.

Suprimir o fausto e a representação nos altos cargos, a fim de que o funcionário, para sustentar sua posição, não se entregue à fraude e à rapina ou a fim de que não seja obrigado a dar aos mais ricos os cargos que deveriam caber aos mais capazes.

Estes meios, repito-o, são excelentes paliativos que podem adormecer a dor e aliviar as chagas do corpo social. Mas não espereis com isto devolver-lhe a força e a saúde, enquanto cada um possuir solitariamente e absolutamente seus bens; podeis cauterizar uma úlcera, mas inflamareis todas as outras; curareis um doente, e matareis um homem são; porque o que acrescentais ao haver de um indivíduo tirais ao de seu vizinho.

Disse More, então, a Rafael, seu interlocutor:

– “Longe de compartilhar vossas convicções, penso, ao contrário, que o país em que se estabelecesse a comunidade de bens seria o mais miserável de todos os países. Com efeito, como produzir para as necessidades do consumo? Todo mundo fugiria do trabalho e descansaria dos cuidados com sua existência sobre o trabalho dos outros. E, mesmo que a miséria perseguisse os preguiçosos, desde que a lei não mantém inviolavelmente, para e contra todos, a propriedade de cada um, a rebelião rugiria, sem cessar, esfomeada e ameaçadora, e a matança ensanguentaria vossa república.

Que barreira oporíeis à anarquia? Vossos magistrados têm apenas uma autoridade nominal; estão despidos, despojados de tudo que impõe o temor e o respeito. Não chego nem mesmo a conceber a possibilidade de governo nesse povo de niveladores que repele toda espécie de superioridade”.

– “Não me espanto que penseis assim, replicou Rafael. Vossa imaginação não poderia fazer a menor ideia de uma tal República, ou dela tem apenas uma ideia falsa. Se tivésseis estado na Utopia, se tivésseis assistido ao espetáculo de suas instituições e de seus costumes, como eu, que lá passei cinco anos de minha vida, e que não me decidi a sair senão para revelar esse novo mundo ao antigo, confessaríeis que em nenhuma outra parte existe sociedade perfeitamente organizada.”

– “Pois então, disse eu a Rafael, fazei-nos a descrição desta ilha maravilhosa.”

 

Obs.:  seguem em próximos posts trechos de: Thomas Morus, “Utopia”, 1516. Trata-se um clássico cuja leitura é indispensável à cultura geral nestes tempos incultos e bárbaros.

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