Minha Escolha de Trabalho Não Alienante

Ipanema – RJ – 1953

Era uma vez, uma criança caçula de três irmãos da geração baby-boom, nascidos em série, eu um ano e dois meses depois do meu irmão ainda bebê. Eu era muito tímido diante da reação dos outros à minha ocupação de lugar.

De modo geral, minha infância foi feliz, cercado de proteção materna e com um pai médico provedor. Nossos avós maternos levavam-nos nos fins de semana para uma fazenda, onde desfrutávamos a liberdade de viver em harmonia com a natureza. Passávamos férias nas praias cariocas com os avós paternos.

Até um dia acontecer meu primeiro “ponto de ruptura”: acompanhar meu irmão mais velho no Jardim de Infância. Vi a “escola maternal” como um mundo hostil, cercado de crianças competitivas. Todas desejavam os “bens da moda”, queriam se apossar o tido pelos outros.

Chorei, esperneei, berrei. Agarrava-me à mão de minha mãe, ficava no canto sofrendo até ela vir me salvar daquele ambiente confuso de disputa e rivalidade. Essa batalha se prolongou até um armistício. O acordo entre mãe e filho, para a suspensão temporária da vivência com aquelas hostilidades de crianças envolvidas em disputa, exigiu eu assumir um dever. Eu estudaria com ela, diariamente, até me alfabetizar. Depois, quando tivesse sete anos, entraria no primeiro ano da Escola Fundamental ABC – hoje, o ensino primário.

Aproveitei feliz a trégua. No meu “recreio”, subia o pé-de-caqui, no quintal de minha casa, vizinha ao do Jardim de Infância. Lá eu tinha um bom posto de observação do “território inimigo”: o pátio de recreação dos meus ex-colegas. Observava acuradamente seus comportamentos, suas táticas, as lideranças e os subordinados. Esboçava minha estratégia para o futuro retorno.

Fui alfabetizado com a letra redonda da caligrafia de minha mãe e o hábito de leitura das histórias-em-quadrinhos e os clássicos infanto-juvenis adquiridos por meu pai. Entre outros heróis de capa-e-espada, Robin Hood – roubar dos ricos suas extorsões dos pobres – se tornou meu guia-espiritual em defesa da justiça social.

BH – 3 anos e 7 meses

Por causa disso, quando voltei à vida coletiva, estava mais preparado para o enfrentamento da competição. Aprendi logo as regras do jogo. A partir do segundo lugar, no primeiro boletim escolar, entendi o significado de tirar notas boas. Do mês seguinte até a formatura no Primário, passei a ter uma medalhinha dourada no peito. Não tive mais dificuldade de convivência com os colegas. Fui escolhido como paraninfo da turma de jardim-de-infância e tive de fazer discurso na formatura com dez anos!

Fazenda em MG – 1961

Finalmente, enquanto meus colegas foram fazer o ginásio (Ensino Médio) em colégio religioso, eu fui o único a fazer concurso direto para seleção em colégio público laico, considerado na época o melhor de Belo Horizonte: o Colégio Estadual de Minas Gerais. Eu era vizinho dele, cuja criativa arquitetura em forma de régua, giz, borracha, e mata-borrão, foi criação de Oscar Niemeyer. Ele tinha também arquitetado a Pampulha.

Na minha infância, como observador crítico do mundo exterior, eu desenhava tudo. Era capaz de desenhar uma história-em-quadrinhos. Nos intervalos entre aulas, colegas pediam para eu desenhar no quadro-negro com giz, por exemplo, mergulhadores ou astronautas. Os adultos prognosticavam: certamente, eu seria arquiteto.

Colocaram isso na minha cabeça. Segui com as melhores notas em direção ao Científico para Engenharia. Não tinha dificuldade com nenhuma matéria de Ciências Exatas: Matemática, Física, Química. Na véspera do primeiro vestibular único nas Universidades Federais, o da UFMG, realizado em conjunto com os milhares de candidatos sentados nas arquibancadas do Estádio Mineirão, colocaram Biologia no currículo. Não me dei bem, talvez pela carga emocional negativa criada pelo desestímulo de meu pai aos filhos seguirem sua profissão. Medicina é a profissão universitária com maior renda per capita.

Colégio Estadual – 1964

Intuitivamente, eu percebia não ter o mesmo potencial em todas as múltiplas inteligências existentes. Esse potencial é determinado geneticamente. Podemos ter todo o potencial, mas se não tivermos oportunidades de aprendizagem, motivação, bons professores, não vamos desenvolvê-lo.

Os diversos tipos de inteligência dos seres humanos sugerem as escolhas de certas profissões. Eu não teria dificuldade com as relacionadas à lógico-matemática – na época supervalorizada como símbolo de QI: capacidade de raciocínio lógico e compreensão de modelos matemáticos. Tinha habilidade em lidar com conceitos científicos. Mesmo a inteligência espacial não era de todo ausente, dada minha percepção do sentido de movimento, localização e direção.

Porém, com minha timidez em falar com desconhecidos, notava já uma menor habilidade linguística: domínio da expressão com a linguagem verbal. Pertenço à última geração obrigada a aprender língua estrangeira na Cultura Francesa. A partir dos anos 70, a obrigação passou a ser o domínio do inglês no ICBEU (Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos). Minha resistência ao Império bloqueou minha fluência verbal.

Também minha inteligência musical, quanto ao domínio da expressão com sons, ficou restrita. Sempre fui apenas um bom ouvinte, apreciador dos diversos gêneros musicais: de música africana à música do Oriente Médio, passando pela Ocidental. Convidado por amigos para ser DJ em festas dançantes, hoje, esta talvez fosse uma opção profissional.

Deixei para meu irmão-atleta desenvolver sua inteligência corporal-cinestésica. Não cultivei grande percepção de movimento, peso, resistência e posição do corpo, provocada por estímulos do próprio organismo. Meu domínio dos movimentos do corpo foi dedicado apenas ao futebol e à natação sem competição. Uma ruptura dos ligamentos do joelho, durante uma pelada, encerrou sem glória minha carreira esportiva. Mas amo o futebol. Possibilita a análise do conjunto, da tática, da estratégia, de iniciativas das individualidades.

Quanto à inteligência intrapessoal – a capacidade de auto compreensão, automotivação e conhecimento de mim mesmo –, só durante minha crise de meia-idade (40-44 anos), quando fiz uma terapia Gestalt, aprendi a “tornar-me presente”. É uma doutrina da psicologia baseada na ideia da compreensão da totalidade para haver a percepção das partes.  Possibilita a habilidade de administrar os sentimentos a seu favor.

O fato de ter sido tímido, observador crítico dos costumes e comportamentos, estrategista em defesa de minha sobrevivência social, adquiri certa inteligência interpessoal: a capacidade de se relacionar com o outro, entender reações e ter a empatia de se colocar sob o ponto de vista do outro. Não está entre meus pontos-fortes a inteligência naturalista, isto é, a facilidade de apreender os processos da natureza.

A intrapessoal e a interpessoal compõem a chamada Inteligência Emocional. Todos nós devemos a desenvolver para alcançar um bem-estar pessoal e social.

Quando uma pessoa é nova, é importante ter experiências amplas, para perceber e evoluir as múltiplas inteligências. Quando envelhece, ela já pode favorecer suas inteligências mais expoentes. É relevante estabelecer as metas para sua educação, em determinada área de conhecimento, e treinar as inteligências relevantes para ela.

Afinal, como foi realizada minha escolha profissional? De maneira quase casual. Na véspera do vestibular, quando iria me inscrever como candidato à Arquitetura – o único a escolher na minha turma de futuros engenheiros –, minha irmã dois anos mais velha me alertou sobre o mercado de trabalho desse ofício, baseada em um único caso de um conhecido de seu namorado. Disse-me, ainda, eu não ser tão criativo como um artista. Detalhe: ela estava casada com um fotógrafo e seria uma excelente fotógrafa.

Seu diagnóstico foi fulminante. Desisti de imediato de me tornar arquiteto. E lhe perguntei sua sugestão para meu destino profissional. Disse-me: analista de sistema. O que?! Trabalha com computador, conhece isso? Já ouvi falar. Essa é uma especialização de pós-graduação. Antes, você tem de fazer qualquer graduação. Qual?! Está na moda uma tal de Economia, você não vê a propaganda do Milagre Econômico Brasileiro? Vê a bolsa de valores! No final de 1970, resolvi fazer o vestibular para Economia sem a menor ideia de o que seria esse ofício.

FACE-UFMG – 1974

Memória do contexto: em 1969 existiam apenas 425.478 estudantes universitários no Brasil. Os concluintes foram 44.709. O Ensino Superior ainda não tinha sido massificado.

Passei direto em segundo lugar no curso (e em 13º. em toda a UFMG), uma questão de múltipla escolha a menos (180 X 181) do primeiro colocado. Talvez porque tive uma crise de stress (deu-me um “branco” na minha memória) na véspera do vestibular. Um professor, depois, “cobrou-me” a primeira colocação para a glória do colégio. Mas vi a bobagem disso de tirar sempre 10.

À noite, durante o primeiro ano de curso, estudei Programação Assembler para IBM 360. Nas férias de verão, fui estagiar no SPD da UFMG. Odiei trabalhar com a máquina – e os valores dos engenheiros da computação. Eles a louvavam. Diziam-me: ela nunca erra, quem erra é você! Eu os burlava e recolocava os milhares de cartões perfurados sem mudá-los e, na nova vez, por circunstâncias inteiramente desconhecidas por mim, a máquina processava!

Abandonei-a assim como aquele pessoal crente em sua infalibilidade, onisciência, onipotência e futura onipresença. Porém, logo após o surgimento dos PCs (Computadores Pessoais), eu os adotei. Domino os aplicativos básicos necessários.

Lição de vida profissional vivenciada: o acaso de estudar Economia me levou a tomar gosto pela Ciência Econômica, principalmente pelo tratamento multidisciplinar da Economia como Sistema Complexo. Desde logo, advirto: isso não significa apreciar a convivência com todos os economistas. Aliás, os ortodoxos não me amam… Snif, snif, por que, hein?

Há 44 anos eu me graduei. Aí ocorreu outro ponto de ruptura na minha história pessoal. Largar a vida metropolitana em uma cidade com boa qualidade de vida cultural para a imersão em uma cidade do interior de São Paulo inteiramente desconhecida por mim: Campinas. Fui o terceiro colocado no concurso da ANPEC (Associação Nacional de Pós-Graduação em Economia) e poderia escolher uma das três opções inscritas.

Tinha a priori descartado a FGV-RJ e a FIPE-USP. Em ambas dominavam economistas apoiadores da ditadura militar. Podia ficar no CEDEPLAR em Belo Horizonte (onde minha família morava) ou ir para a UnB, em Brasília (onde meu pai morava). Lá, antes de ir para PUC-RJ, imperava o Edmar Bacha. Sua esposa na época, a Eliane Cardoso, foi à bolsa da FACE-UFMG (sistema de alunos em tempo integral) me convidar pessoalmente para escolher a UnB. Declinei o convite. Fui atrás da minha mentora, Professora Maria da Conceição Tavares, recém-chegada do Chile, após o golpe militar. Não a conhecia pessoalmente, mas admirava sua obra e sua combatividade.

Outra lição de vida: a gente tem de ir atrás de bons professores para o desenvolvimento intelectual. Mentor é aquele indivíduo experiente capaz de guiar (ou dar conselhos a) uma outra pessoa. Minha mestra nunca me deu conselhos, mas deu-me o mais importante para qualquer educador: bons exemplos de postura. A mentora intelectual é a pessoa responsável pelo desenvolvimento e/ou idealização de algo cuja prática influencia os comportamentos de uma outra pessoa mesmo sendo de maneira virtual, não presencial ou inconsciente de sua parte.

O terceiro ponto de ruptura na minha história de escolha profissional foi mudar do Rio de Janeiro, onde talvez tenha vivido os sete anos mais intensos (1978-1985) em termos de relacionamentos interpessoais, militância política, e amizades. Ocorreu com a decisão de largar o emprego no IBGE, onde muito aprendi, mas sentia um “emburrecimento” por não desenvolver todo meu potencial intelectual. Cheguei a ser chefe do Departamento de Contas Nacionais, mas decidi fazer o doutoramento no IE-UNICAMP.

Logo chegando, meu orientador – Professor Wilson Cano – tomou conhecimento do meu desejo de seguir a vida acadêmica e me tornar um intelectual público, surpreendente para muitos colegas, dada minha militância no Rio de Janeiro, onde criei o Núcleo de Economistas do PT. Convidou-me a ser professor do IE-UNICAMP. Completei toda a carreira até Professor Titular. Só me licenciei durante o primeiro governo Lula (2003-2007) para ser vice-presidente da Caixa Econômica Federal. E até fui Diretor Executivo da FEBRABAN.

Essa escolha profissional de trabalho não alienante dá dinheiro? Sim, não posso me queixar em termos relativos à sociedade brasileira. Estou no top 1% mais rico em renda e riqueza. Mas muito mais importante é o sentido da vida: pertencer e servir algo além de mim mesmo ao desenvolver o melhor de mim como divulgador de conhecimento ou “explicador”.

Ivo e Fernando – 1987

Aprendi, recentemente, haver quatro pilares (PPTC) de uma vida com sentido:

  1. Pertencimento: ter relacionamentos afetivos cultivados nos quais nosso valor (nosso melhor “eu”) é reconhecido por ser quem somos (e não por quem amamos ou odiamos em rede social) e também valorizamos os outros (sem ficarmos a consultar o smartphone indiferentes às suas presenças);
  2. Propósito (meta, objetivo): não é simplesmente descobrir um emprego no qual nos sentimos “felizes”. Tem mais a ver com o que oferecemosse comparado a o que desejamos. Devemos usar nossos pontos fortes para servir os outros, seja através do trabalho não alienante, onde se sentimos criando algo significativo – e ao contrário do trabalho alienado no qual a desmotivação se torna um problema existencial –, seja na vida em geral, onde a descoberta dos conhecimentos nos impulsiona.
  3. Transcendênciair além de nós mesmo, pairar acima da rotina cotidiana e nos sentirmos conectados a uma realidade maior, onde perdemos a noção de tempo e lugar, como através da apreciação de todo o tipo de arte, no meu caso, a escrita para divulgação voluntária e gratuita de conhecimento, quando me sinto menos egoísta e mais altruísta;
  4. Contar ou compartilhar histórias pessoais: a nós mesmos, sobre nós mesmos, com a criação de uma narrativa a partir dos eventos da nossa vida para iluminar e entender como nos tornamos quem somos – e controlar nosso ego.

Esta é uma descoberta muito recente, quando alcancei minha terceira-idade. É um conhecimento universal há milênios. Os anciãos têm o dever de compartilhar experiências vivenciadas com os mais novos. Somos autores de nossa história. Podemos mudar a forma como a contamos. Não é simplesmente uma listagem de eventos, não analítica. Podemos editar, interpretar e recontar nossas histórias. Mesmo limitados pelos fatos experimentados, a edição da nossa história muda a nossa vida. A “história redentora”, quando o mal é redimido pelo bem, serve de incentivo aos outros.

Os pontos de ruptura, as viradas, as reviravoltas, os momentos decisivos como “turning point”, muitas vezes, são dolorosos, levam a perdas antes de ter os ganhos esperados. Por exemplo, quando troquei o IBGE pela UNICAMP, larguei o Rio de Janeiro por Campinas e troquei o dobro do salário pela metade. Tudo isso em curto prazo. Depois, houve a reviravolta por ter feito essas opções.

A mudança de vida exige uma reflexão profunda sobre nossa vida, como as experiências marcantes nos moldaram, o que perdemos, o que ganhamos. A mudança não é rápida, pode levar anos. Todos nós sofremos, todos nós batalhamos, mas as memórias dolorosas, tanto quanto as alegres, podem levar a insights e sabedoria para nos sustentar, emocional e racionalmente, pelo resto da vida. Isto dinheiro nenhum paga.

3 thoughts on “Minha Escolha de Trabalho Não Alienante

  1. Uau! Inspirador… Estou na fase de ruptura, meia idade e em condições históricas estruturais diferentes das suas… Além disso, num momento muito trash do nosso país.
    Mas quão é cristalino este seu depoimento me fortalece e muito! Obrigada.

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