
Paulo Meyer Nascimento é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor visitante da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas. Publicou artigo (Valor, 04/01/22) sobre a política eleitoreira do atual desgoverno.
No apagar das luzes de 2021, o governo editou medida provisória, prometida há meses, com regras de anistia para o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). A anistia alcança dívidas em atraso superior a 90 dias – parâmetro que as tornam, sob a ótica oficial, de difícil recuperação. Joga-se para a torcida anistiando dívidas já contabilizadas como prejuízo ao erário. De todo modo, anistia pura e simples não é a melhor solução e isso já é bem sabido. Trata-se de caminho rápido – e ruim.
O Fies é um programa de empréstimos, não de bolsas. Quando um contrato do Fies é assinado, o governo paga as mantenedoras das instituições de ensino com títulos a serem usados apenas para honrar débitos fiscais e previdenciários.
De tempos em tempos, o próprio governo recompra os títulos das mantenedoras sem dívidas pendentes. Contratos assinados até 2017 exigem, durante o curso, pagamentos de R$ 150 a cada 3 meses, a título de amortização; contratos posteriores exigem coparticipação mensal, que varia de caso a caso. Em todos, findas matrícula e carência, emitem-se boletos das prestações propriamente ditas, durante prazo preestabelecido.
O próprio governo já arca com parte da dívida estudantil: paga valor cheio às mantenedoras e recebe pagamentos a juros subsidiados de quem tem suas mensalidades financiadas. Juros nada mais são do que a remuneração de quem empresta, como se o próprio dinheiro fosse uma mercadoria.
Quando empresta, o banco cobra um “preço” (juros) que lhe dê lucro. Ao definir esse “preço” leva em conta, inclusive, o risco de tomar calote.
Quando o empréstimo é uma política pública, costuma haver diferenças. Governo não busca lucro. Portanto, cobra juros menores. Quando quer muito incentivar algo, vai além: empresta a juros menores do que ele próprio (governo) paga para remunerar títulos públicos.
O Fies é uma dessas políticas. No caso, busca incentivar que mais gente curse graduação. Embora exista quem pense que há gente demais estudando, fato é que a população adulta do Brasil conclui curso superior em percentual muito menor do que na maioria dos países de renda média e alta.
Com pouca gente formada, não é de se surpreender que, em termos relativos, salários médios de quem tem curso superior sejam bem mais altos no Brasil do que em outros países. Tudo isso é todo ano documentado com dados em relatórios divulgados por organismos internacionais.
Não significa, porém, que, se formou, sai com emprego e bons salários. Haverá quem demorará a alcançar boa inserção. Haverá quem nunca conseguirá ocupação e remuneração condizentes com sua formação.
Quanto pior o cenário econômico, mais numerosas são essas pessoas. Políticas como o Fies hão de levar isso em conta e prever mecanismos para proteger de tais riscos quem decide cursar graduação e precisa de financiamento público para tanto. Proteção-chave para quem não dispõe de outras fontes de ajuda quando o sapato aperta.
Empréstimos tradicionais, onde o saldo devedor é distribuído em prestações que se estendem por período preestabelecido, não oferecem proteção a tais riscos. Cada prestação há de ser paga até a data de vencimento, faça chuva ou faça sol. Caso contrário, fica-se inadimplente.
Apesar de os juros do Fies serem subsidiados, pesa a dívida no bolso de muitas pessoas. Mesmo uma pequena contrapartida durante o curso pode ser fatal para algumas. Daí a defesa por perdão das multas e dos juros, quiçá até do principal. Há alternativa?
Quem estuda assistência estudantil mundo afora costuma destacar as vantagens de um outro tipo de financiamento, cujos pagamentos são vinculados à renda futura da pessoa. A dívida estudantil só é paga se a pessoa puder, quando puder e na velocidade em que sua renda permitir.
Funciona como um seguro para a pessoa financiada, pois, sem renda compatível, não há pagamento – e o refinanciamento é instantâneo, sem necessidade de repactuações nem anistias. Bem implementada a ideia, contorna também outro problema: o da disposição a pagar.
Não há que ter boletos, nem comprovação de renda. Com pagamentos automatizados e incidentes sobre amplas fontes de renda do trabalho e do capital, torna-se atraente também para quem financia.
Quem melhor afere a renda das pessoas no Brasil e dispõe de mecanismos eficientes de recolhimento na fonte é a Receita Federal. Mas ela só recolhe tributos, não cobra prestações de empréstimos. Como fazer?
Existe uma espécie tributária no Brasil chamada contribuição. Há várias em vigor, da Cide-Combustíveis à contribuição patronal para o Sistema S. Em todas, a Receita recolhe o tributo, mas cabe a outro órgão gerenciar a arrecadação.
No Fies, é o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ligado ao Ministério da Educação, o órgão que sabe quem deve e quanto. Com uma contribuição no jogo, caberia ao FNDE informar a Receita quem precisa ser cobrado e dela receber a arrecadação, com a devida informação de quem pagou o quê – para daí o FNDE fechar o ciclo distribuindo o montante entre quem financiou estudantes. Finda a dívida, cessa o tributo.
Nesse formato, instituição financeira dá o crédito, a Receita Federal recolhe a contribuição, uma agência regula esse mercado e o FNDE faz o meio de campo entre Receita e financiadores. Fomentaria mercado privado de crédito educativo, decerto a beneficiar a classe média, ao mesmo tempo em que o governo poderia se concentrar em ajudas a estudantes mais pobres, ajudas essas que futuramente poderiam se converter em reembolsos a retroalimentar o próprio programa público, pois os subsídios naturalmente se concentrarão em quem não pode mesmo pagar.
Lei de fins de 2017 já prevê pagamentos vinculados à renda no âmbito do Fies. Erra ao tratar a ideia como uma variação do crédito consignado. Não é, pois baseia-se na renda futura, que é incerta, não na renda atual. Também erra ao não desenhar o mecanismo de recolhimento dos pagamentos – e nem seria por lei ordinária que isso viria.
Lá se vão 4 anos de tentativas infrutíferas de tirar a lei de 2017 do papel. Nem sairá, sem as reformas necessárias para que a Receita Federal entre no jogo. Até lá, pressão por amplas anistias serão recorrentes e conquistarão corações e mentes, pois a sociedade parece entender que dívida estudantil não pode ser tratada como qualquer outra.
Como se vê, há caminhos melhores. Precisam, contudo, entrar no debate público.