IA e a Mutação no Trabalho

Francisco Gaetani é professor da EBAPE/FGV e secretário extraordinário para a Transformação do Estado, do Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.

Virgilio Almeida é professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard, professor emérito da UFMG e ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação.

O transbordamento das discussões sobre Inteligência Artificial (IA) para todas as áreas da vida econômica e social trouxe à tona com mais força ainda um dos temas mais importantes e mais sensíveis do processo de transformação digital: o trabalho. A pergunta que surge é qual (e como o) trabalho será afetado: o das pessoas, o das máquinas, o dos algoritmos, todos juntos e misturados? É uma questão sensível pela simples razão de que a remuneração das pessoas é uma função do seu trabalho, seu meio de vida.

O saldo do balanço quantitativo da expressão schumpeteriana “destruição criadora” é ainda indeterminado. O senso comum sugere que em um primeiro momento a extinção de postos de trabalhos aparentemente supera a criação de novas ocupações. Mas estudos recentes indicam que regiões e setores que mais crescem e que geram novos postos de trabalho são os mais intensivos em tecnologia.

Talvez seja o momento de recordar um dispositivo constitucional esquecido pela torrente de assuntos que disputam nossa atenção cotidiana, que fala de forma simples, porém clara, que é preciso cuidar do impacto da tecnologia sobre o trabalho. Está lá no artigo sétimo: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, (…) XXVII – proteção em face da automação, na forma da lei”.

O mundo era outro em 1988 e viria a mudar intensamente com episódios como a Queda do Muro de Berlim em 1989, os eventos de 11 de setembro de 2001, a crise financeira global de 2007/2008, o advento do smartphone, as redes sociais, a pandemia de covid-19 e a guerra na Ucrânia, dentre outros. A redação presente na Constituição de 1988 parece quase singela à luz da realidade de hoje. Como fazer frente à marcha da história?

A incerteza sobre o impacto da IA no trabalho é uma questão global. Diferentes países e governos buscam criar mecanismos de proteção para minimizar a turbulência que as tecnologias de IA podem trazer ao mercado de emprego. Recentemente, um grupo de trabalho sobre IA, formado por uma comissão bipartidária do Senado americano, publicou um relatório com o título “Impulsionando a Inovação nos Estados Unidos em Inteligência Artificial: Um Roteiro para a Política de Inteligência Artificial no Senado dos Estados Unidos”. O informe foi motivado pelo reconhecimento comum por parte de ambos os partidos das profundas mudanças que a IA poderá trazer para o país, mudanças estas que afetarão a economia, produtividade, a segurança nacional e a capacidade da força de trabalho dos EUA.

O relatório americano enfatiza a necessidade de se incluir grupos da sociedade civil, sindicatos, trabalhadores e empresários nas discussões sobre o desenvolvimento e implantação de serviços baseados na IA. Recomenda também a proposição de

legislações visando treinar e melhorar a força de trabalho do setor privado para que ela possa se adaptar à economia da inteligência artificial. Sugere a adoção de legislações e políticas públicas que ofereçam incentivos para as empresas desenvolverem estratégias que incorporem novas tecnologias aproveitando funcionários requalificados. Propõe o apoio a ações de treinamento para trabalhadores que buscam se requalificar para as novas funções em um mundo cada vez mais operado por tecnologias intensivas em IA.

O relatório americano nos coloca frente a uma questão estratégica: quais os planos do Brasil para se preparar para as ondas de automações que se anteveem? O avanço acelerado das tecnologias de IA, de uso geral, atinge praticamente todos os tipos de trabalho, incluindo aquelas profissões que até então se consideravam imunes as automações, como médicos, advogados, professores, publicitários, designers e outros.

O importante é observar que a operação das novas tecnologias conjugadas com a capacidade humana apresenta resultados mais ricos e promissores em termos de gestão de riscos, qualidade do produto, aderência às necessidades das pessoas, desempenho institucional e resultados financeiros em certos casos. As possibilidades de inovação têm mais espaço no desenvolvimento de serviços e sistemas que incluem a colaboração entre os humanos, as máquinas e os algoritmos do que na automação que busca simplesmente substituir o elemento humano.

Estamos observando a eliminação do contato humano na interação do cliente com o comércio varejista, a “despresencialização” em curso na maioria das atividades econômicas e o desparecimento das pessoas em estabelecimentos como bancos, hospitais, consultas médicas, escolas, repartições públicas, aeroportos e lojas, dentre outros. Os “call centers” estão sujeitos a um impacto brutal devido ao avanço da IA generativa. Os ganhos de produtividade são indiscutíveis, mas a busca contínua por eficiência sem limites esbarra na possibilidade da deterioração da qualidade, acurácia e quantidade de produtos e serviços, com a exclusão do elemento humano.

As mudanças na natureza do trabalho irão demandar novas habilidades visando a preparação da força de trabalho para a era da IA. Todo o sistema educacional precisa ser repensado, de forma urgente e profunda. A ampliação da capacidade e do escopo das aplicações de IA deve levar a um futuro em que a IA será um componente de quase todos os empregos. A criação de uma força de trabalho preparada para a automação e IA é um passo fundamental para os novos tempos. Isso exigirá políticas públicas e parcerias que possam promover um espectro de habilidades em IA como parte da formação das novas gerações.

A inação levará à formação de gerações futuras para um mundo que já não existirá mais em pouco tempo. Noutras palavras: produziremos uma exclusão social em uma escala sem precedentes na nossa história. Se governo e sociedade não se mobilizarem em torno do valor do trabalho humano frente à revolução digital, teremos que lidar com uma massa crescente de trabalhadores obsoletos, disfuncionais e ociosos que precisarão ter seu sustento e sua inserção social de alguma forma equacionados. Ou não, com as consequências previsíveis.

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