Luta contra Segregação Racial: Legado Universal de Mandela

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A expressão raças humanas refere-se a um antigo conceito antropológico, fortemente criticado e em desuso, mesmo nesta disciplina, desde meados da década de 1950, que classifica populações ou grupos populacionais com base em vários conjuntos de características somáticas e crenças sobre ancestralidade comum. As categorias mais amplamente usadas neste sentido restrito, baseiam-se em traços visíveis, tais como cor da pele, conformação do crânio e do rosto e tipo de cabelo, bem como a auto-identificação.

Em stricto sensu, não haveria por que se falar em raças humanas. Este conceito, desacreditado na maioria dos círculos científicos, era popular no século XIX, mas perdeu o interesse heurístico face ao desenvolvimento da genética na segunda metade do século XX.

Concepções de raça – em taxonomia, raça é o mesmo que subespécie –, bem como as formas específicas de agrupá-las, variam de cultura em cultura e através do tempo. São frequentemente controvertidas por razões científicas, sociais e políticas. A controvérsia, finalmente, gira em torno da questão de se as raças são ou não tipos naturais ou socialmente construídos, e o grau no qual diferenças observadas em capacidade e realizações, categorizadas em bases raciais, são um produto de fatores herdados, isto é, genéticos, ou de fatores ambientais, sociais e culturais.

Alguns argumentam que embora “raça” seja um conceito taxonômico válido em outras espécies, não pode ser aplicada a seres humanos. Muitos cientistas têm argumentado que definições de raça são imprecisas, arbitrárias, oriundas do costume, possuem muitas exceções, têm muitas gradações e que o número de raças descritas varia de acordo com a cultura que está fazendo as diferenciações raciais.

Assim, rejeitaram a noção de que qualquer definição de raça pertinente a humanos possa ter rigor taxonômico e validade. Hoje, a maioria dos cientistas estudam as variações genotípicas e fenotípicas humanas usando conceitos tais como “população”. Muitos antropólogos debatem se enquanto os aspectos nos quais as caracterizações raciais são feitas podem ser baseados em fatores genéticos, a ideia de raça em si, e a divisão real de pessoas em grupos de características hereditárias selecionadas, seriam construções sociais.

É somente no século XIX, justamente quando se luta contra as últimas escravidões de seres humanos no mundo ocidental, que se começa a falar de raças dentro da espécie humana. Foi o Conde de Gobineau que popularizou, em meados do século XIX, um novo significado, em seu ensaio racista Essai sur l’inégalité des races humaines (“Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”, 1853-1855), no qual toma partido a favor da tese poligenista. Segundo essa tese racista, a qual a humanidade poderia ser dividida em várias raças distintas, as quais seriam passíveis de serem tratadas em uma base hierárquica.

O racialismo ou racismo científico, tornou-se a partir daí a ideologia predominante nos meios eruditos, na Antropologia, Física, etc., em conjunto com o mau uso do evolucionismo, através do que ficou conhecido como darwinismo social, contemplando as teorias eugênicas desenvolvidas por Francis Galton. A tentativa de prover um discurso científico (“ideologia científica”) para os preconceitos racistas só seria fortemente desacreditado após o genocídio dos judeus da Europa praticado pela Alemanha Nazista.

A segmentação artificial em “raças humanas” disseminou-se amplamente na época do nacionalismo inflamado, em que se fez “proclamação de ideologias racistas em nome da ciência”. Estes preconceitos eram exercidos, simultaneamente, por vários países europeus em processo de colonização do continente africano.

A grande variabilidade dos traços físicos dos seres humanos torna impossível definir raças fechadas, onde os traços seriam estritamente próprios de um determinado grupo. De fato, a grande maioria das características físicas são quantitativas. Assim, definir uma raça se fundamentando na pigmentação da pele é um processo delicado já que todas as nuances existentes na espécie humana, e mesmo dentro de determinados grupos. Daí a discussão, na América Latina e nos Estados Unidos, sobre as diferentes tonalidades de “negro”, ou a complicada classificação, desde a colonização das Américas, a fim de hierarquizar os indivíduos mestiços de grupos étnicos distintos em função da cor de sua pele.

O uso criminoso da noção de “raça”, durante a Segunda Guerra Mundial, pelo regime nazista, e a ausência de categorizações fiáveis ligadas a esta noção, levam os antropólogos a não mais utilizar tal tipo de classificação. Na segunda metade do século XX, esta ideia foi pouco a pouco sendo abandonada sob três influências:

  1. ambiguidade do termo e ausência de base científica, demonstradas graças ao avanço da biologia e da genética;
  2. papel desempenhado por estas ideias no genocídio nazista;
  3. obras de Claude Lévi-Strauss e Franz Boas, os quais transformaram a Antropologia e lançaram luz sobre os fenômenos do etnocentrismo inerentes à toda cultura.

Em meados dos anos 1950, a UNESCO recomendou que o conceito de “raça humana”,  considerado não-científico e que levava a conflitos, fosse substituído por grupos étnicos, o qual insiste fortemente nas dimensões culturais dentro da população humana: língua, religião, costumes, hábitos, etc. Todavia, as tentativas racistas persistem, como bem o demonstram os recentes debates sobre a publicação de “The Bell Curve” (1994), de Richard Herrnstein e Charles Murray, que afirmam ter estabelecido uma correlação científica entre “raça” (no caso, negros e brancos) e inteligência.

O que é peculiar na história do apartheid sul-africano (pronúncia em africâner de “separação”) foi um regime de segregação racial adotado de 1948 a 1994 pelos sucessivos governos do Partido Nacional na África do Sul, coincidentemente, na época em que no mundo civilizado se estabeleceram inúmeras lutas anti-racistas, inclusive nos Estados Unidos. Lá, os direitos da grande maioria dos habitantes foram cerceados pelo governo formado pela minoria branca.

A segregação racial na África do Sul teve início ainda no período colonial, mas o apartheid foi introduzido como política oficial após as eleições gerais de 1948. A nova legislação dividia os habitantes em grupos raciais (“negros”, “brancos”, “de cor”, e “indianos”), segregando as áreas residenciais, muitas vezes através de remoções forçadas. A partir de finais da década de 1970, os negros foram privados de sua cidadania, tornando-se legalmente cidadãos de uma das dez pátrias tribais autônomas chamadas de bantustões. Nessa altura, o governo já havia segregado a saúde, a educação e outros serviços públicos, fornecendo aos negros serviços inferiores aos dos brancos.

Nelson Mandela (original de 1994: 150) conta: “além da Lei de Repressão ao Comunismo [tornava ilegal o Partido Comunista da África do Sul – tal como o PCB e o PCdoB no Brasil pouco antes – e transformava em crime, punível com uma sentença de até um máximo de dez anos de prisão, a filiação ao partido ou promover os objetivos do comunismo. Mas a lei foi elaborada com um alcance tão amplo que ela tornava ilegais praticamente todas as manifestações contra o Estado, criminalizando a defesa de qualquer doutrina que promovesse ‘mudanças políticas, industriais, sociais ou econômicas na União pela promoção de distúrbios e desordem. Essencialmente, a lei permitia ao governo tornar ilegal qualquer organização e a reprimir qualquer indivíduo que se opusesse às suas políticas.] duas leis aprovadas em 1950 formaram os alicerces do apartheid: a Lei de Registro da População e a Lei de Áreas para Grupos.”

(…) “a Lei de Registro da População autorizava oficialmente o governo a classificar todos os sul-africanos segundo sua raça. Se já não era assim antes, raça se tornou o sine qua non da sociedade sul-africana. Os testes arbitrários e inúteis para distinguir negros de mestiços, ou mestiços de brancos, frequentemente, resultavam em casos trágicos onde membros da mesma família eram classificados diferentemente, tudo dependendo do fato de uma criança possuir uma tez mais clara ou mais escura. O local onde se permitiria que alguém morasse e trabalhasse podia depender de distinções absurdas tais como os cachos de cabelo da pessoa ou o tamanho de seus  lábios.”

“A Lei de Áreas para Grupos era o alicerce do apartheid residencial. Sob suas regras, cada grupo racial podia possuir terras, ocupar instalações e negociar apenas em sua própria área separada. Indianos a partir de então só poderiam morar em áreas indianas, negros em áreas para negros, mestiços em áreas para mestiços. Se os brancos quisessem terras ou casas dos outros grupos eles poderiam simplesmente declarar que a terra era uma área de brancos e toma-las. A Lei de Áreas para Grupos iniciou a era das remoções forçadas, quando comunidades, cidades e aldeias de negros localizadas em áreas recém-declaradas áreas urbanas ‘brancas’ eram violentamente transferidos porque os proprietários brancos vizinhos não queriam ter negros vivendo nas proximidades ou simplesmente queriam suas terras”.

O apartheid trouxe violência e um significativo movimento de resistência interna, bem como um longo embargo comercial (e até esportivo) contra a África do Sul. Uma série de revoltas populares e protestos causaram o banimento da oposição e a detenção de líderes antiapartheid. Conforme os protestos se espalhavam e se tornavam mais violentos, as organizações estatais respondiam com o aumento da repressão e da violência.

Reformas no regime, durante a década de 1980, não conseguiram conter a crescente oposição. Em 1990, o presidente Frederik Willem de Klerk iniciou negociações para acabar com o apartheid, o que culminou com a realização de eleições multiétnicas e democráticas em 1994, que foram vencidas pelo Congresso Nacional Africano, sob a liderança de Nelson Mandela.

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