Maria da Conceição Tavares, Minha Mentora

A Professora Maria da Conceição Tavares foi o fator de atração para minha emigração: a gente tem de ir atrás de bons professores para nosso desenvolvimento intelectual. Ela se tornou – e é minha mentora.

Mentor(a) é aquela pessoa capaz de guiar outra com compartilhamento de ideias. Serve a alguém como sábio(a) consultor(a). Inspira, estimula a criatividade, o livre pensar. Não necessita ser a orientadora presencial de ideias e realizações de seu discípulo.

Minha mestra nunca me deu, diretamente, conselhos pessoais, mas deu-me o mais importante para qualquer educador: bons exemplos de postura intelectual sábia e atitude política combativa. A prática exemplar da mentora influencia os comportamentos de outra pessoa mesmo sendo de maneira não presencial ou inconsciente de sua parte.

Fui aluno dela no mestrado em 1976 e no doutorado em 1985 do IE-UNICAMP. Tive a oportunidade de presenciar então o primeiro curso dado por ela após seu retorno do Chile. Dividiu-o com o Professor Carlos Lessa.

Ela dava em uma aula cada fase dos ciclos da economia brasileira, ele apresentava em outra a política econômica da ocasião. Cada qual se rivalizava em brilhantismo intelectual. Não em didatismo.

Ela propiciava um brainstorm de ideias sobre tudo e todos. Tinha insights fantásticos aos borbotões sem tempo sequer para os alunos anotarem.

Resultado: saíamos da sala-de-aula encantados pelo espetáculo, mas se nos perguntassem o que tínhamos aprendido na aula, apenas teríamos condições de responder: “ficamos muito impressionados com a sapiência dela”… Não conseguiríamos reproduzir nada do dito, mas éramos estimulados a estudar para alcançar suas lições.

Aprendemos a aprender. Fomos estimulados a estudar muito para enfrentar os desafios intelectuais. Além disso, disse-nos para jamais falarmos algo sobre a economia brasileira sem mostrar evidência empírica porque senão seríamos acusados de só dizer ideologia.

Quase ao mesmo tempo ela se enfurecia com indignação face às impropriedades da vida pública brasileira e admirava as virtudes da miscigenação cultural, cujo olhar estrangeiro percebia e exaltava. Vociferava aos brados ou colericamente, berrava, clamava, proferia palavrões aos gritos contra os desatinos, mas também ironizava e ria das situações absurdas.

Com o tempo entendemos sua impaciência com a burrice alheia. O conceito científico de idiota não se refere à pessoa carente de inteligência ou de discernimento. O tolo, ignorante, estúpido, pode até ser tolerado, mas a pessoa pretensiosa, vaidosa, jamais ela perdoou.

Idiota é quem não tem consciência do mal feito a si próprio e aos outros, inclusive desconhecidos. Em consequência, a Professora tinha razão em exigir-nos a preparação árdua, mas prazerosa, para enfrentar os desafios intelectuais do debate público.

Seguindo seu exemplo de combatividade, aprendemos a gostar de estudar e pesquisar com objetivo além do enriquecimento pessoal. Tratava-se de preparar-nos para o enfrentamento do debate público contra os neoliberais, voltados apenas para a defesa da liberdade de O Mercado. Somos a favor do igualitarismo social, bandeira de esquerda compartilhada por alunos e professores classificados e marginalizados como “heterodoxos”.

Disse-me ela em certa ocasião: – “Com quem você acha eu aprendo hoje? Com meus discípulos! Vocês são especialistas, não são generalistas como eu. Portanto, tratem de pesquisar até aprenderem a fazer uma síntese sistêmica como eu faço.”

Dotada de uma visão holística, prioriza o entendimento integral dos fenômenos, em oposição ao procedimento analítico no qual seus componentes são tomados isoladamente. A análise da economia como um sistema complexo exige o holismo.

Ela nos deu exemplo de comportamento humilde, mas sábio. Criticava as ideias, não guardava rancor com as pessoas em debate intelectual.

Em seminários no auditório do IE-UNICAMP, quase sempre era a única pessoa a anotar tudo de relevante dito pelos palestrantes. No debate, sempre os questionava, não só para testar a defesa de suas hipóteses, em atitude científica, mas também para sedimentar sua aprendizagem.

Era engraçado quando o interlocutor sustentava veementemente uma hipótese contrária à dela. Debatia com ele até o ponto quando ela automaticamente passava a defender a hipótese se ficava convencida da força dos argumentos contrários.

Com os anos de acompanhamento de seus passos mesmo à distância aprendi: ela respeita as personalidades fortes, combativas, e não tolera a arrogância esnobe. Se ela grita com alguém, aceita a pessoa retrucar com a mesma veemência e passa a respeitá-la.

Em um mundo profissional essencialmente masculino, quando passou a trabalhar em meio a economistas, abriu espaço aos gritos e impondo o respeito aos machistas através de seu brilho intelectual. Talvez, por isso mesmo, achávamos ela cobrar mais das jovens economistas tímidas. Preparava-as para o combate mundano.

Exigia-nos também o conhecimento teórico plural. Como heterodoxos, tínhamos de superar o marxismo vulgar – “de merda!” –, aprendido apressadamente por conta própria, e ampliar nossa capacidade analítica com outras teorias, inclusive as ortodoxas, para melhor debatê-las – e combatê-las.

O conhecimento multidisciplinar de Ciências Afins (Política, Sociologia, Psicologia, Antropologia etc.) e História era também incentivado. Um bom economista tem de ser capaz de fazer uma abordagem pluralista nos planos da abstração, evolução e regulação.

Com ela não se trata apenas de Livre Pensar uma teoria pura. Além de “O Pensar”, ela exige “O Querer”, isto é, a capacidade de aplicar a teoria, e mais: O Julgar.  A capacidade de tomar melhores decisões é a Arte da Economia aprendida com a Professora (com P maiúsculo).

O ensino mais eterno não está no dito por ela, mas sim no não dito – e descoberto por ex-alunos através de sua exemplar postura profissional e política. O dito é esquecido, o visto é lembrado, o feito é aprendido. A mestra vive na obra do(s) discípulo(s).

Publicado originalmente em: https://jornalggn.com.br/economia/maria-da-conceicao-tavares-minha-mentora-de-fernando-n-da-costa/

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