Noções Gerais de Auto-Organização

DesnorteandoA introdução, ainda necessária, ao uso ou apresentação do termo auto-organização em uma teoria se defronta com duas dificuldades não excludentes.

A primeira é que a auto-organização foi descrita em diferentes sentidos ao longo de mais de dois séculos. Qualquer referência ao termo pode levar o leitor a noções que não necessariamente estão presentes no significado que o teórico deseja impingir. Isso ocorre porque os novos enfoques não superaram definitivamente os anteriores.

A segunda é que ainda considerando-se ter havido uma ruptura paradigmática que transformou a auto-organização em campo de estudos próprio não há, e não parece que possa haver, definição suficiente para abarcar as possibilidades contempladas pelo termo. O que as partes constituintes do sistema auto-organizam leva à funcionalidade e a algum padrão (mesmo que provisório) de comportamento de uma variável. Esta pode ser própria ou exclusiva deste sistema ou pode ser relativa a um novo campo específico de aplicação.

É recorrente observarmos a citação da variação de energia, matéria ou informação ou de conhecimento ao invés de informação como variáveis de interação do sistema com o meio em um processo de auto-organização. Gustavo de Oliveira Aggio, em sua Tese de Doutorado, Análise Sistêmica Para Fenômenos Monetários, cita a liquidez como uma variável que não temos o conhecimento de ter sido utilizada nessa perspectiva.

Liquidez não é energia, matéria ou informação/conhecimento. A liquidez de um ativo é uma variável relativa e, portanto, podemos pensar em fluxo positivo ou negativo de liquidez para dentro de um determinado sistema não na forma de fluxo de ativos mais ou menos líquidos, mas de uma mudança no grau de liquidez associado aos ativos internos e/ou externos a este sistema.

Abordagens teóricas locais, em determinadas disciplinas científicas, podem ser provisoriamente suficientes para o desenvolvimento e aprofundamento de importantes campos de pesquisa. Pode ocorrer, porém, que mesmo abordagens específicas possuam elementos suficientemente transcendentes às suas áreas. Faz-se, então, necessário tomar cuidado para que não haja uma generalização precoce dos resultados. Nesse caso, a estrutura metodológica empregada correria o risco de comprometer a aplicação do termo pela possibilidade de uso indevido de analogias.

Aggio resenha uma apreciação histórica do uso do conceito de auto-organização. Define três momentos dentro da história da ciência e da filosofia para a noção de auto-organização.

O primeiro momento surge com Kant, da necessidade de se explicitar a diferença entre um organismo vivo – que é constituído por elementos não vivos – da matéria inanimada. Auto-organização seria a capacidade de manter processos internos a um organismo responsáveis pela sua própria existência.

Posteriormente, a separação entre a organização dos complexos vivos em relação aos conjuntos mecânicos reaparece quando as noções de equilíbrio da Física Mecânica newtoniana se mostram insuficientes ou inadequados para representar sistemas biológicos constantemente afetados pela ação do meio.

Regularidade e reação a eventos externos passam a ser interpretados considerando a contraposição do princípio conservativo de energia em sistemas fechados com a relação recorrente e perene entre:

  • o objeto ecológico ou biológico e
  • o meio externo.

Isto leva a noções alternativas ao equilíbrio como a noção mais geral de estado estacionário e a homeostase. Dado que o organismo não é autossuficiente, seja esse organismo um bioma completo, seja uma única célula, passou a ser necessário entender o surgimento e a funcionalidade das estruturas em um processo de constante e adaptativa troca de matéria e energia com o meio externo. Estes objetos de estudo não se encontram no estado de equilíbrio termodinâmico e que, portanto, deve-se considerar a Segunda Lei da Termodinâmica no processo de teorização da auto-organização.

O segundo momento surge nos anos 1920 e 1930 com um movimento teórico de certa forma contrário ao original. Entendem-se, nesse período, as estruturas vivas de forma não excludente a mecanismos e máquinas. Na verdade, com referência a Segunda Lei da Termodinâmica, compreende-se existirem mecanismos que permitem o funcionamento contínuo em um meio mediante processos próprios de controle e de interação e que tais processos não são considerados, agora, como propriedades exclusivas de organismos vivos.

A própria noção de auto-organização passa por um período de crítica nesse momento. Se as propriedades de controle são aquelas do sistema que demonstram funcionalidade deste em relação ao meio externo ou em relação direta com outro sistema, então seria contraditório dizer que estas são propriedades internas do sistema. Estas configurariam mecanismos de reação ou de interação que somente são completos e funcionais, que somente existem, quando complementados com o externo.

O mecanismo, máquina ou sistema supostamente capaz de auto-organização seria apenas parte de um processo que envolveria outros mecanismos, máquinas e sistemas em uma relação que não apresentaria a emergência espontânea de novas estruturas e funcionalidades. Nesse caso, a preservação e a capacidade de autorreplicação de estruturas já concebidas ou originais ganha destaque ao invés da noção de novas estruturas internamente geradas quando o sistema é exposto a variações externas.

A partir dos trabalhos de Prigogine e Nicolis nos anos 1960 e 1970 e, posteriormente, com a pesquisa realizada no Instituto Santa Fé, houve uma mudança paradigmática na noção de auto-organização. Uma vantagem teórica desta nova vertente ocorre pela apreciação direta das propriedades da dinâmica dos sistemas por meio da abordagem matemática. Se anteriormente concebia-se ser necessário categorizar os sistemas auto-organizados como fora do equilíbrio mecânico ou termodinâmico, agora o estudo de sistemas dinâmicos não-lineares fornece os elementos de teorização do processo de auto-organização. Novas formas de padrões e recorrências, em um sentido amplo destes termos, que antes não eram percebidas porque ainda não haviam sido apreendidos na própria Matemática, ainda que o estudo de sistemas dinâmicos não-lineares iniciou-se no final do Século XIX, constituem o foco de toda uma nova discussão teórica.

Nessa perspectiva de “sistemas dinâmicos e seus atratores”, a propriedade emergente deve ser explicada conforme as possibilidades do conjunto de equações que descreve a dinâmica do sistema. A ideia de ordem em sistemas complexos é concebida, por exemplo, com relação a sistemas constituídos por muitas variáveis (dimensões) as quais podem apresentar atratores estranhos de baixa dimensão. Nesse caso, o universo de possibilidades (ou o espaço de estados) para qual tende a dinâmica é muito mais reduzido do que a quantidade de variáveis sugere inicialmente, ainda que a dinâmica dentro deste conjunto restrito possa ser imprevisível ou de comportamento errático.

Leia mais: D’Ottaviano e Bresciani (2004) —

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7 thoughts on “Noções Gerais de Auto-Organização

  1. Prezado Fernando,

    Kant foi infeliz na sua definição de auto-organização, incorreu em erro devido à tentativa de usar somente a mente nua e crua para chegar numa definição genérica.

    Uma definição de auto-organização que conheço é – Vide Wikipedia – Autopoiese Autopoiese ou autopoiesis (do grego auto “próprio”, poiesis “criação”) é um termo cunhado na década de 1970 pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios. Segundo esta teoria, um ser vivo é um sistema autopoiético, caracterizado como uma rede fechada de produções moleculares (processos) em que as moléculas produzidas geram com suas interações a mesma rede de moléculas que as produziu. A conservação da autopoiese e da adaptação de um ser vivo ao seu meio são condições sistêmicas para a vida. Portanto, um sistema vivo, como sistema autônomo está constantemente se autoproduzindo, autorregulando, e sempre mantendo interações com o meio, onde este apenas desencadeia no ser vivo mudanças determinadas em sua própria estrutura, e não por um agente externo.

    Essa definição está de acordo com a concepção de consciência que é um “pós-posicionamento do indivíduo no mundo da vida” – o prefixo “pós” é necessário como alusão ao trabalho executado pelas redes neurais em constante atividade em nosso cérebro.

    Percebemos que em nossa consciência não há um núcleo central (topdown), cujas abordagens top-down e bottom-up (de baixo para cima e de cima para baixo), não se aplicam, em razão de nossos neurônios executarem constantemente os parsing (processo de análise de uma sequência de entrada), levando esses dados para conjugações semânticas nas próprias redes neurais sinápticas.

    Segue abaixo e-books que tratam detalhadamente as abordagens da complexidade nos sistemas auto organizados com ênfase em economia e sistemas sociais. Abs.

    Artificial Economics and Self Organization Agent-Based Approaches to Economics and Social Systems Pdf: https://drive.google.com/file/d/0B-IzSwsM47neY2ZpZDEzUzFPakE/view?usp=sharing

    Evolutionary Foundations of Economic Science – Volume 1 – Yuji Aruka Pdf: https://drive.google.com/file/d/0B-IzSwsM47neNGNDcnRHRUJrWlE/view?usp=sharing

    Frontiers of Evolutionary Economics – Competition, Self-Organization, and Innovation Policy – John Foster and J. Stanley Metcalfe Pdf: https://drive.google.com/file/d/0B-IzSwsM47neWFhFN3BaZXZfNEU/view?usp=sharing

    Qual o Significado da Vida? – SEAN CARROLL

    • Prezado Fernando,
      suas sugestões bibliográficas tem sido muito boas! Só tinha o livro do Aruka, agradeço os demais.

      Estou apresentando em meus cursos, justamente, esse desafio intelectual: a relação de determinação (ou não) entre indivíduos e sociedade, Mercado e Estado, agentes e estrutura, interações e emergência de Sistemas Complexos. Enfim, é o insuperável debate entre o individualismo metodológico e o holismo.
      abs

      • Prezado Fernando,

        o holismo se faz presente quando consideramos uma população cujos agentes estão sujeitos ás mesmas regras de convivência e comportamento considerando o mesmo ambiente interno onde vivem, cuja auto-organização passa a ser a força motriz que atua nesse contexto.

        Com relação ao individualismo metodológico, aí impera o puro Darwinismo, com os elementos ambição, competição e uma corrida para ganhar cada vez mais mercado e hegemonia.

        A complexidade é um assunto que me interessa muito, tenho cada vez mais insights no tratamento de elementos combinados de semântica para ampliar a compreensão em campos como: Inteligência Artificial, Cognição, Matemática, Lógica, Física e Hermenêutica.

        Inclusive voltei a reler Wittgenstein, estou preparando vários posts sobre a lógica da posicionalidade e semântica. Lembra dos comentários sobre os nadificadores – em razão da existência de 3 nadificadores 3N (o Nada elevado ao cubo)?

        Smolka explica de uma forma bem didática os Sistemas de Numeração Posicionais: http://smolkaetcaterva.blogspot.com.br/2010/10/sistemas-de-numeracao-1-sistemas-de.html

        Ajudaria bastante em suas pesquisas os seguintes autores

        Smolka et catervarii: http://smolkaetcaterva.blogspot.com.br/
        Sean Carroll: http://preposterousuniverse.com/
        Terence Tao: https://terrytao.wordpress.com/

        Gostei deste trabalho do Terence: Equidistribuição para as fases polinomiais multidimensionais: https://terrytao.wordpress.com/2015/08/06/equidistribution-for-multidimensional-polynomial-phases/

        Abs.

      • Prezado Reinaldo,
        talvez toda essa literatura seja artificial para minha limitada inteligência…

        Quanto mais estudo, mais sabedor de minha infinita ignorância fico. E me desespero com minha desesperança no eterno caminho para alcançar um verdade inalcançável, pois ninguém a possui.
        🙂

      • Prezado Fernando,
        temos um foco centrado em nossas atividades diárias que tomam muito tempo, é normal no ofício de cada um. Entretanto, para nós que somos pesquisadores e precisamos cada vez mais de esclarecimentos em determinados assuntos, manter uma certa contingência e cultivar fontes de informação é vital para que nossas dúvidas frequentes e crescentes possam ser respondidas dentro do possível. Por exemplo: os Fractais são uma aula de infinitude para gerarmos uma calibragem de nossa atenção em certos limites, principalmente para evitar cair no vício do reducionismo.

        Eu mesmo, só fui compreender a fundo a filosofia após estudar matemática e física; chamamos isso de pensamento fora da caixa, ajuda na definição da própria inteligência artificial, foi aí que percebi a pós posicionalidade da consciência. Abs. 😉

      • Prezado Reinaldo,
        tenho usado os fractais como uma metáfora do estudo de um Sistema Complexo como a economia, que não converge para um equilíbrio estático, mas é auto-organizada de forma dinâmica.

        Mas gostei muito dessa sua imagem (con)figurada: “os Fractais são uma aula de infinitude para gerarmos uma calibragem de nossa atenção em certos limites, principalmente para evitar cair no vício do reducionismo.”

        Fractal é definido como estrutura geométrica complexa, cujas propriedades, em geral, repetem-se em qualquer escala. Um fractal é um objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhante ao objeto original. Os fractais têm infinitos detalhes, são geralmente autossimilares e independem de escala. Em muitos casos, um fractal pode ser gerado por um padrão repetido, tipicamente um processo recorrente ou iterativo.

        Assim, usando-o como metáfora, a economia, tal como o fractal, exige do analista a análise das interações de seus agentes em diferentes escalas: micro, meso e macroeconômica; ou comportamental, institucionalista, evolucionária e complexa. É como um GPS no automóvel, giramos um botão de comando e nos localizamos em diferentes escalas!

        Uma revista de Psicologia denomina-se A Fractal, pois reconhece a necessidade de coexistência entre as diferentes vertentes de pesquisa no campo da Psicologia, alimentando o debate constante como forma de incentivo à produção científica. Bom nome, não?

        Outro dia, citei a Gestalt em sala-de-aula e um aluno, que estuda fotografia, disse-me que essa palavra — Gestalt é uma palavra, pronunciada “guestalt”, de origem alemã que pode ser traduzida aproximadamente como, “Forma Total” ou “Forma Global” — também é usada em análise de imagem. Em Psicologia, é a teoria que considera os fenômenos psicológicos como totalidades organizadas, indivisíveis, articuladas, isto é, como configurações. Em arte plástica, é o posicionamento que afirma serem a carga emocional e os conceitos estéticos atributos de uma obra de arte e não do seu espectador.

        É uma teoria que estuda como os seres humanos percebem as coisas. A psicologia da Gestalt enfoca as leis mentais – os princípios que determinam a maneira como percebemos as coisas.

        Ela prega que nossa percepção não se dá por “Pontos Isolados”, mas sim por uma visão de “Todo”. Então, funda-se na idéia de que “o Todo é mais do que a simples soma de suas Partes”. “A+B” não é simplesmente “(A+B)”, mas sim um terceiro elemento “C”, que possui características próprias.

        Então, fica a pergunta para nossa reflexão: a Gestalt configura um Fractal holista?
        abs

  2. Prezado Fernando,

    a sua tentativa de usar o Fractal e seus conceitos para representar a economia é coerente e produzirá novos insights. Sendo o Fractal um padrão específico e complexo, podemos aplicar esse mesmo método em vários ramos epistêmicos, ao identificar um padrão seja em economia ou análise sistêmica, podemos expandi-lo para modelos que se relacionam diretamente com o assunto estudado.

    Aplicando esse raciocínio ao estudo da Gestalt que tenta identificar padrões de comportamento contextualizando o indivíduo com o ambiente, percebemos que quanto mais mergulhamos no indivíduo, mais expressivos os padrões se tornam, neste caso, podemos afirmar que se trata de um Fractal Holista. Abs.

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