Manifesto dos Indignados Norte-americanos: Ocupe Wall Street

Radicalmente, à direita e à esquerda, os “indignados” estão demonizando todos os banqueiros e o próprio sistema bancário, constituído pelo setor bancário e o público não bancário, isto é, todos nós, os clientes bancarizados. A que levará a ação coletiva, convocada via rede social, com a denúncia moralista da “corrupção” e/ou da “ganância”? O que se propõe no lugar do sistema bancário de pagamentos?

Examinemos seus argumentos. A surpresa dos leigos é que o dinheiro é criado como dívida, ou seja, empréstimos geram depósitos, e não o contrário. A cadeia gerada a partir desse crédito originário leva a um “empréstimo perpétuo”, pois os bancos lucram com o endividamento geral, tanto do governo, quanto do público. E qualquer corrida bancária para o resgate simultâneo de todos os depósitos em papel-moeda (ou outro lastro caso estivéssemos ainda no padrão-ouro) levaria ao “feriado bancário”, isto é, à derrocada do sistema financeiro. Conjuntamente, seria a falência de todos os depositantes e investidores e, consequentemente, de todo o sistema capitalista. Nessa situação de CGC (Crise Geral do Capitalismo), naturalmente, os governos e os Bancos Centrais se reúnem para salvar os “bancos grandes demais para falir”.

O que os indignados propõem fazer diante de uma situação dessa? Primeiro, mudar o próprio conceito de dinheiro, abandonando a ideia de moeda-dívida. Depois, fazer quatro simples perguntas aos governos.

A dívida do governo representa grande parte da dívida total e é paga com os impostos pagos pelos contribuintes. Se os bancos podem “criar do nada” o dinheiro que emprestam ao público não bancário, com a permissão do próprio governo, a primeira simples pergunta é: por que os governos recebem empréstimos de bancos particulares e pagam juros se tem o poder de criar dinheiro sem juros à vontade?

A segunda pergunta é: por que criar dinheiro na forma de dívida? Por que não criar dinheiro de circulação permanente, que não precise ser emprestado e reemprestado a juros, para continuar existindo?

A terceira questão é: como pode um sistema monetário baseado em crescimento perpétuo servir para construir uma economia sustentável? Crescimento perpétuo e sustentabilidade são obviamente incompatíveis.

A quarta questão é: por que o nosso sistema atual depende totalmente de crescimento perpétuo? O que deve ser feito para criar uma economia sustentável?

O movimento resgata o preconceito religioso sobre a usura, isto é, a crítica contra a cobrança de juros compostos sobre empréstimos. O argumento contra a usura era moral: “a única finalidade legítima do dinheiro”, diziam os religiosos católicos medievais (e dizem os islâmicos contemporâneos), “é facilitar trocas de bens e serviços reais”. Ganhar dinheiro sobre dinheiro era visto como parasitagem ou roubo. Esse argumento moralista, no entanto, perdeu para o interesse direto dos empreendedores que reconheciam que empréstimo envolve risco e perda de oportunidade para o emprestador, justificando a cobrança de juro para atender a demanda por empréstimo. Hoje, em um mundo parasita e/ou rentista, a pergunta-chave tornou-se: por que trabalhar, se o dinheiro pode trabalhar para você?

Os indignados reagem ao rentismo dizendo que, se queremos um futuro sustentável, a cobrança de juros representa um problema prático e moral. Para se sustentar durante séculos futuros, ao invés de exaurir os estoques de energia, tem de se limitar ao ganho do dia em termos de luz solar ou energia eólica. Dentro do mesmo princípio, não se extrairia mais madeira além do que se pode cultivar no mesmo período de extração. Enfim, toda energia seria renovável: solar, gravitacional, geotérmica, magnética ou outra que venha a ser descoberta. Uma sociedade assim viveria no limite de seus recursos não-renováveis, reutilizando e reciclando tudo. Os preservacionistas radicais pregam até a taxa de fertilidade populacional ser estável, ou seja, reprodução simples (2 filhos / casal) e não ampliada. Uma sociedade assim, logicamente, não pode funcionar como um sistema monetário baseado em crescimento perpétuo.

Uma economia estável precisa de um suprimento estável de dinheiro é o princípio monetarista adotado por esses liberais norte-americanos. Só poderia emitir empréstimo aquele que tivesse algo a emprestar. Mas se alguns bancos começarem, sistematicamente, a emprestar dinheiro a juros, a sua parcela no dinheiro total irá crescer. Se os pagamentos das dívidas forem, repetidamente, emprestados a juros, qual vai ser o resultado? Quer seja ouro, moeda fiduciária ou moeda-dívida, os emprestadores logo serão novamente donos de todo o dinheiro existente! Se os negócios forem à falência, eles confiscarão também os bens reais!

“Mas se os lucros, devido a juros, fossem distribuídos equitativamente entre os cidadãos do país, o problema central seria resolvido”. Sim, seria o fim do sistema capitalista! Os radicais pensam que “uma tributação pesada sobre os lucros bancários talvez resolvesse o problema, mas aí os bancos perderiam o interesse pelo negócio”.

A conclusão acaba sendo muito ingênua ao não explicitar como se enfrentaria os problemas decorrentes desse radicalismo. “Se um dia conseguirmos nos libertar da servidão da usura, os bancos poderiam funcionar sem fins lucrativos. Os lucros dos juros seriam pagos ao povo como um dividendo universal, ou os bancos emprestariam o dinheiro sem juros”. Sendo assim, não captariam pagando juros. De onde viria o dinheiro?

Aparentemente, a proposta dos indignados seria mudar o sistema capitalista, mas sem tremular a bandeira comunista, pois esta não seria aceita nos EUA. No entanto, lendo suas ideias, acaba se percebendo o reacionarismo, isto é, a reação contra a evolução histórica. Não são conservadores, são bem intencionados, mas acabam tornando-se reacionários, pois propõem uma volta atrás na roda da História. Defendem o pré-capitalismo!

“Se o problema está nos princípios básicos do sistema, não vai adiantar fazer pequenos ajustes. Todo o sistema deve ser descartado. Muitos críticos propõem o retorno do dinheiro-ouro, pela sua longa história de confiabilidade. Esquecem das fraudes que podem ser praticadas com ouro: raspagem de moedas, substituição de metais, controle do mercado. A maior abundância da prata dificultaria o controle do mercado de moedas. Muitos duvidam da vantagem de usar metais preciosos. Deixou de ser seguro e prático usar moedas metálicas. Papel-moeda, moeda digital, plástico (cartões), inclusive senhas biométricas, todos tem o potencial de criação ilimitada de dívida, como ocorre atualmente. Além disso, se o ouro virar a única base legal do dinheiro, quem não tiver ouro, logicamente, ficará sem dinheiro!”

Outros defensores da reforma monetária acreditam que o principal problema seja moral, ou seja, a ganância e a desonestidade. Sendo questão de caráter (e polícia), é possível um sistema monetário justo e honesto, sem ouro ou prata.

Na visão nacionalista típica dos norte-americanos, há abstração do resto do mundo. Acabam adotando algumas ideias paroquiais que serviriam no máximo para algumas comunidades locais, jamais para regular as relações financeiras e comerciais da economia mundial.

“Existem diversas propostas criativas para um novo sistema monetário. Alguns sistemas privados de troca criam dinheiro como dívida, tal como os bancos, mas o processo é transparente, e não se cobra juros. Existem sistemas de troca em que a dívida é expressa em horas de trabalho, como todo trabalho valendo um valor fixo igual. Com isso, o trabalho pode ser equiparado com o preço dos bens. Esse tipo de sistema monetário pode ser criado por qualquer pessoa que saiba como fazer a contabilidade e encontre participantes dispostos e dignos de confiança. Um sistema monetário local de troca, mesmo que seja pouco usado, é muito útil à comunidade no caso de carência, por exemplo, devido à hiperinflação”.

É brandido, como era de se esperar, o argumento apelativo de que os que não apoiam essa ideias ingênuas seriam “vendidos ao sistema”. Advertem: “reforma monetária, como reforma eleitoral, é assunto muito sério. É preciso vontade de mudar e capacidade para pensar fora dos padrões usuais. Não é fácil fazer reforma eleitoral ou monetária. Os grupos poderosos que se beneficiam com o sistema atual farão tudo para manter sua posição”.

Os indignados dizem que “o dinheiro é apenas uma ideia, na realidade, o dinheiro pode ser o que quisermos. Uma alternativa simples para um sistema monetário seria um modelo baseado em sistemas que deram certo no passado, que, no entanto, foram destruídos pelos ourives-banqueiros da época quando inventaram o sistema de reserva fracionada”.

Essa imagem idílica escamoteia a violência da história monetária. A soberania do Estado nacional tem dois pilares básicos: o poder militar, dado pelo monopólio oficial da violência, e o poder de gasto, dado pelo monopólio da emissão da moeda. Na realidade, o dinheiro sempre foi criado pela sociedade como um todo, dependendo tanto de definição institucional, pois a lei não é a do mercado, mas a do mais forte, quanto de aceitação mercantil, já que o mercado tem de aceitá-la. Assim, a moeda nacional ou oficial é criação do Estado, mas necessita da aceitação da comunidade para tornar-se dinheiro. O confronto entre o Estado e o mercado a respeito de o que vai constituir o dinheiro, principalmente em circunstâncias de ameaças de hiperinflação, quando há fuga de capital (“apátrida”) para a moeda estrangeira, é o mais eletrizante na história monetária.

Os indignados divulgam a seguinte proposta. “Para criar uma economia baseada em dinheiro permanente e livre de juros, o dinheiro poderia ser criado pelo governo, de preferencia em infraestrutura duradoura que ajude à economia. Por exemplo, estradas, ferrovias, pontes, portos e mercados públicos. Esse dinheiro não seria criado como dívida, seria criado como valor e convertido na infraestrutura paga com ele. Se o comércio utilizando o novo dinheiro crescesse, proporcionalmente, não haveria inflação nenhuma. Porém, se os gastos do governo gerasse inflação, ainda haveria duas soluções. A inflação equivale a um imposto simples sobre o dinheiro. Quer o dinheiro perca 20% do seu valor ou o governo tire 20% do nosso dinheiro, o efeito sobre nosso poder aquisitivo será o mesmo. Assim, inflação controlada é politicamente aceitável contanto que o dinheiro tenha sido bem aplicado. Ou o governo pode combater a inflação coletando impostos ou tirando parte do dinheiro de circulação, reduzindo o suprimento de dinheiro e restaurando o seu valor. Para controlar a deflação, ou seja, a queda de preços e salários, bastaria o governo emitir e gastar mais dinheiro”.

Curiosamente, para combater a inflação, aceitam sem maiores questionamentos a Teoria Quantitativa da Moeda, doutrina do mainstream, pilar do monetarismo conservador. Para combater a depressão, adotam o keynesianismo mais primário.

A respeito da passagem de um sistema de livre mercado para o de sistema bancário estatizado não dizem muito como se daria a transição. Certamente, não seria pacífica, sem corrida bancária. O que seria feito do estoque de contratos vigentes? Os devedores seriam perdoados?! Os investidores perderiam tudo?! A dívida pública seria monetizada de manhã e a reforma monetária, conjuntamente com a nacionalização do sistema bancário, seria realizada à tarde, estabelecendo a paridade entre a moeda-velha e a moeda-nova?

“Sem a concorrência de um sistema privado de criação de moeda-dívida, o governo teria maior controle do suprimento de dinheiro no país. O povo saberia a quem culpar no caso de uma crise. Os políticos eleitos teriam que provar sua capacidade de preservar o valor do dinheiro. O governo funcionaria à base de impostos, como hoje em dia, mas o dinheiro renderia muito mais, porque não haveria necessidade de pagar juros elevadíssimos aos bancos privados. Não haveria dívida nacional se o governo simplesmente criasse o dinheiro necessário. Sem o pagamento dos juros da dívida pública, acabaria a servidão coletiva perpétua aos bancos privados”.

Eles se esquecem que essa servidão é voluntária! Os devedores solicitam empréstimos aos bancos para alavancar seus negócios.

Entretanto, ao invés de adotar o realismo, preferem apelar para uma teoria conspiratória da história. “Enquanto a sociedade continuar totalmente dependente de crédito bancário para manter o suprimento de dinheiro, os banqueiros terão o poder de decidir quem terá acesso ao dinheiro. O atual sistema tem raízes profundas. Nas escolas e na mídia reina o silêncio sobre o assunto ‘criação da moeda’. Ninguém, nem mesmos profissionais universitários bem formados, sabem com exatidão como o dinheiro é criado! Há total ignorância a respeito da natureza do dinheiro, do crédito e da circulação!”

Então, acham que tudo explicam. Mas adotam a tese da dívida impagável, que foi muito defendida no Brasil pré-Lula. “O sistema moderno de dinheiro como dívida nasceu a 300 e poucos anos, quando o primeiro Banco da Inglaterra foi estabelecido em 1694, com autorização do rei para fazer empréstimos garantidos por uma modesta reserva fracionada de 2:1. Este foi o primeiro passo do sistema, agora mundial, que cria do nada quantias ilimitadas de dinheiro. Quase todos os povos estão sob o jugo de uma dívida crescente, perpétua e impossível de pagar. Tudo isso nasceu por acaso? Ou foi uma conspiração?”

Os indignados incorporam também a tese do Tea Party de retornar às ideias dos fundadores da nação norte-americana: “os problemas de hoje não são nenhuma novidade, porque os nossos líderes, ao longo da história, nos alertou e lutou contra o sistema financeiro que temos na América de hoje”. Finalizam seu manifesto defendendo a ideia de Abraham Lincoln, ex-presidente dos Estados Unidos, assassinado: “o governo deveria criar, emitir e circular toda a moeda e crédito necessária para os gastos do governo e o poder aquisitivo dos consumidores. A adoção destes princípios eliminaria a necessidade de impostos para pagar juros astronômicos. O privilégio de criar e emitir dinheiro não é apenas uma suprema prerrogativa do governo, mas é a sua maior oportunidade criativa”.

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