Os Sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador

André Singer consolidou sua reflexão, apresentada em diversos papers (pesquise seu nome neste blog), no instigante livro “Os Sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador“. Eu “o devorei”! É um livro fácil de ler e que faz o leitor pensar: pode se exigir maior excelência em um livro?!

Entretanto, embora eu respeite sua análise classista de origem marxista, não concordo com todas as hipóteses levantadas por Singer. Ele defende que houve mudança de conteúdo na polarização PT-PSDB, estabelecida desde 1994.

“Estaríamos em face de uma repolarização da política brasileira. (…) [ao PT] se tornar ‘mais Brasil’, ele se torna menos ‘dos Trabalhadores’, isto é, opera um deslocamento de classe e, portanto, ideológico (…). A ascensão do subproletariado, do qual o PT se tornou o representante na arena política, por isso se assemelhando a um ‘partido dos pobres‘ de estilo anterior a 1964, significa que as classes fundamentais passam para o fundo da cena. Foi por isso que a polarização entre esquerda e direita esmaeceu, sendo substituída por uma polarização entre ricos e pobres, parecida com a do período populista” (Singer, 2012: 34).

O que me deixa inquieto quanto à essa hipótese é que, embora reconheça que houve nítida separação entre o voto dos pobres e o dos ricos, Singer afirma que, “simultaneamente, ocorreu diminuição do alinhamento ideológico que prevaleceu entre 1989 e 2002, quando os votos da esquerda estavam com o PT e os da direita eram anti-PT”. Em suma, ele pensa que “no lulismo a polarização se dá entre ricos e pobres, e não entre esquerda e direita”.

Defende, então, que por conta de os pobres não gostarem de “bagunça”, e apreciarem a “ordem”, esse conservadorismo teria imposto ao lulismo no governo apenas um “reformismo fraco”. Seria como está expresso no subtítulo do livro: “reforma gradual e pacto conservador“. O governo de Lula não teria afrontado nem os ricos capitalistas nem os pobres do subproletariado. Então, teria deixado de ser “partido de esquerda“, como supostamente seria o PSOL, e se tornado “partido dos pobres“, como o PTB varguista.

Como a esquerda universitária uspiana nunca apreciou o populismo, daí justifica-se sua dissensão. Antes, quando eu era estudante da graduação da FACE-UFMG, era bastante influenciado por essa linha de pensamento expressa em livros e cadernos do CEBRAP. Depois, aumentando meu conhecimento da história política e econômica brasileira, no IE-UNICAMP, passei a ter mais dúvidas a respeito da crítica uspiana do  populismo varguista, realizada, p.ex., por Francisco Weffort, ex-secretário geral do PT, que optou pela postura corporativista de apoio a ex-colega, assumindo cargo de Ministro da Cultura no Governo FHC. O populismo não foi desenvolvimentista e legou conquistas sociais?

É verdade que “o lulismo separa os eleitores de baixa renda das camadas médias, tornando os dois principais partidos do País – PT e PSDB – representativos desses polos sociais. (…) PT e PSDB são as expressões de uma polarização social talvez até mais intensa do que a dramatizada por PTB e UDN nos anos 1950. A diferença está em que os partidos de agora evitam a radicalização política da polarização social“.

O “escândalo do mensalão” e seu justiçamento, explorado desde 2005, diuturnamente, pelo PIG (Partido da Imprensa Golpista), teria horrorizado a classe média, inclusive a de esquerda, e a afastado do PT: esta hipótese de André Singer é verdadeira? Na realidade, as regiões periférica das metrópoles (veja os casos de S.Paulo e Salvador no post Antipetistas X Petistas = Centro X Periferia?) são as zonas em que o PT registra as melhores votações em eleições municipais desde 2000.

A realidade não é tão esquemática. Incomoda-me certo “economicismo” da análise do André Singer, isto é, extrair de determinações socioeconômicas, diretamente, conclusões político-eleitorais. Não acho, em absoluto, que houve um deslocamento de toda a esquerda e a classe média para a posição antipetista, apenas a minoria mais moralista e/ou “udenista”.

O antipopulismo uspiano, expressão da elite paulistana, e o PSOL da USP, cuja expressão intelectual é Chico de Oliveira, não são exemplos nacional e socialmente representativos. Um contra-argumento é que o Fernando Haddad ganhou na simulação da eleição municipal na USP: voto corporativo, ideológico de esquerda e/ou retorno dos valores meritocráticos da classe média universitária?

Em suma, minha dúvida, nessa altura da experiência de vida, é se eu não estava enganado, quando ajudei a fundar o PT, a respeito de que seria “um partido inteiramente novo a partir das bases”, i.é, movimentos sociais latu sensu? Não diria com “o espírito do Sion”, denominação que não gosto por ter batalhado por isso distante do Sion paulistano. Eu diria com “o espírito do basismo“.

Será que, hoje, transcorridos mais de 30 anos, não necessitamos ter a humildade histórica, reconhecendo que não se trata de “nunca antes na história deste País”? O PT não resgata uma tradição histórica trabalhista e popular, interrompida por um Golpe de Estado e uma ditadura militar? Ele não possui uma raiz histórica que vai muito além do sindicalismo do ABC paulista, no final dos anos 70s, mas que incorpora elementos novos da esquerda, criados após a ditadura? A criação (e a hegemonia) de um partido por parte dos trabalhadores organizados, em aliança com militantes de esquerda, combatendo a desigualdade social, não é uma evolução histórica que dá um passo adiante em relação ao populismo varguista?

Leia mais: Sumário e Introdução de “Os Sentidos do Lulismo” de André Singer

Abaixo, leia um trecho de “Os Sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador”.

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Introdução

Alguns temas da questão setentrional

Afirmam os que o camponês meridional está ligado ao grande
proprietário rural por meio do intelectual. Este tipo de organização
é o mais difundido em todo o Mezzogiorno e na Sicília. Forma
um monstruoso bloco agrário que no seu conjunto funciona
como intermediário e guardião do capitalismo setentrional e dos
grandes bancos. Seu único objetivo é conservar o status quo.
Antonio Gramsci, Alguns temas da questão meridional

O lulismo existe sob o signo da contradição. Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo movimento. É o caráter ambíguo do fenômeno que torna difícil a sua interpretação. No entanto, é preciso arriscar os sentidos, as resultantes das forças em jogo, se desejamos avançar a compreensão do período. Faço a minha aposta principal em forma de pergunta, pois o processo ainda está em curso: a inesperada trajetória do lulismo incidirá sobre contradições centrais do capitalismo brasileiro, abrindo caminho para colocá-las em patamar superior?

Para tentar uma resposta, é necessário refazer os passos históricos e descer aos detalhes materiais e ideológicos que os sustentaram. Na aparência, tendo vencido a eleição de 2002 envolto ainda por restos da aura do movimento operário dos anos 1980, o ex-metalúrgico apenas manteve a ordem neoliberal estabelecida nos mandatos de Collor e FHC. Decidido a evitar o confronto com o capital, Lula adotou política econômica conservadora. Nos dois primeiros meses de 2003, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) aumentou os juros de 25% para 26,5%. De modo a pagar a dívida contraída com essa elevação, o Executivo subiu a meta de superávit primário de 3,75% em 2002, já considerada alta, para 4,25% do PIB (Produto Interno Bruto) e anunciou em fevereiro enorme corte, de 14,3 bilhões de reais, no orçamento público, quase 1% do produto estimado para aquele ano. O poder de compra do salário mínimo foi praticamente congelado em 2003 e 2004. Para completar o pacote, em 30 de abril de 2003 o presidente desceu a rampa do Planalto à frente de extensa comitiva para entregar pessoalmente ao Congresso projeto com reforma conservadora da Previdência Social. Entre outras coisas, a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 40 acabava com a aposentadoria integral dos futuros servidores públicos.

O efeito das decisões foi o esperado. O crescimento caiu de 2,7% nos últimos doze meses de Fernando Henrique Cardoso para 1,3% do PIB nos primeiros doze do PT. O desemprego aumentou, passando de 10,5% no derradeiro dezembro tucano para 10,9% no primeiro dezembro petista (2003). A renda média do trabalhador caiu 12,3%. As instituições financeiras tiveram um resultado 6,3% maior. Compreende-se, portanto, que na conclusão de O ornitorrinco, datada de julho de 2003, o sociólogo Francisco de Oliveira tenha afirmado que o Brasil era “uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão”.

Entretanto, passados oito anos, o cenário era outro. Em dezembro de 2010 os juros tinham caído para 10,75% ao ano, com taxa real de 4,5%. O superávit primário fora reduzido para 2,8% do PIB e, “descontando efeitos contábeis”, para 1,2%. O salário mínimo, aumentado em 6% acima da inflação naquele ano, totalizava 50% de acréscimo, além dos reajustes inflacionários, entre 2003 e 2010. Cerca de 12 milhões de famílias de baixíssima renda recebiam um auxílio entre 22 e duzentos reais por mês do Programa Bolsa Família (PBF). O crédito havia se expandido de 25% para 45% do PIB, permitindo o aumento do padrão de consumo dos estratos menos favorecidos, em particular mediante o crédito consignado.

As consequências dessas medidas, voltadas para reduzir a pobreza, ativando o mercado interno, foram igualmente lógicas. O crescimento do PIB, em 2010, pulou para 7,5%. O desemprego, em dezembro, havia caído para 5,3%, taxa considerada pelos economistas próxima ao pleno emprego. O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, foi de 0,5886 em 2002 para 0,5304 em 2010. Entrevistada em novembro de 2010, a economista de origem portuguesa Maria da Conceição Tavares afirmava: “Eu estou lutando pela igualdade desde que aqui cheguei [1954]. E só agora é que eu acho que estamos no rumo certo”. Um ano antes, Conceição assinalava que o governo Lula estava “tocando três coisas importantes: crescimento, distribuição de renda e incorporação social”.

O que teria acontecido nos dois quadriênios em que Lula orientou o Brasil? Confirmou-se o truncamento da acumulação e a desigualdade “sem remissão”, previstos por Oliveira, ou se entrou em fase de desenvolvimento com distribuição de renda, observada por Tavares? O país teria dado seguimento à vocação conservadora, que afogara, no passado, as possibilidades de desenvolvimento democrático, ou estariam certas as avaliações de que a aceleração do crescimento e a redução da desigualdade inauguravam etapa distinta? E, caso estivessem corretas as perspectivas otimistas, como teria sido possível destravar a economia e reduzir a iniquidade sem radicalização política, numa transição quase imperceptível do viés supostamente neoliberal do primeiro mandato para o reformismo do segundo?

Este livro não tem a pretensão de dar respostas definitivas a essas perguntas, mas procura oferecer um esquema interpretativo com base no qual elas podem ser equacionadas. Em resumo, o esquema proposto tem o seguinte roteiro. Teria havido, a partir de 2003, uma orientação que permitiu, contando com a mudança da conjuntura econômica internacional, a adoção de políticas para reduzir a pobreza – com destaque para o combate à miséria – e para a ativação do mercado internosem confronto com o capital. Isso teria produzido, em associação com a crise do “mensalão”, um realinhamento eleitoral que se cristaliza em 2006, surgindo o lulismo. O aparecimento de uma base lulista, por sua vez, proporcionou ao presidente maior margem de manobra no segundo mandato, possibilitando acelerar a implantação do modelo “diminuição da pobreza com manutenção da ordem” esboçado no primeiro quadriênio.

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“Os Sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador”
Autor: André Singer
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 280
Quanto: R$ 24,50 (preço promocional*)

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