Azul É A Cor Mais Quente (La Vie d’Adele)

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“Clémentine tinha 15 anos quando avistou Emma na rua pela primeira vez entre transeuntes apressados. Apesar de lutar contra o turbilhão de sensações que lhe vinham à tona cada vez que pensava na misteriosa Emma e seus cabelos azuis, Clémentine sabia que não poderia controlar seus desejos por muito tempo. Enfrentando os olhares alheios e a moral vigente, Clém entrega-se a essa intensa relação, descobrindo sua sexualidade e seu lugar no mundo.”

É esse o enredo da história em quadrinhos “adulta” (sic), Azul é a cor mais quente (Le bleu est une couleur chaude). A obra, escrita e desenhada pela francesa Julie Maroh, serviu de inspiração para o longa vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano, La vie d’Adele (Azul é a cor mais quente) do diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche.

Pois é, até o cinema francês se rendeu à infantilização operada no cinema norte-americano, inspirada em história em quadrinhos! Este abusa de efeitos especiais (em 3D), em mundos da fantasia, atraentes para seu público-alvo com mentalidade infanto-juvenil. Ou então é a boçalidade ultraviolenta estilizada, cheia de sonoras explosões e desastres catastróficos, que atrai adultos com complexo de Peter Pan.

No início do século passado, acreditava-se que, assim como músicos ou pintores, escritores precisavam de um equivalente às escolas de arte ou música para aprender os princípios de seu ofício. Então, alguns acadêmicos escreveram excelentes livros sobre dramaturgia e a arte da prosa. Seu método era intrínseco, extraindo o poder dos movimentos do desejo, forças do antagonismo, pontos críticos, estrutura, progressão, crise, clímax – a estória vista de dentro para fora.

Escritores contemporâneos, com ou sem educação formal, usaram esses textos para desenvolver sua arte. O meio século entre os anos 20, desde a criação do cinema falado, até os anos 70, tornou-se a “era de ouro” da estória americana, no cinema, no papel e no palco.

Nos últimos 30 anos, porém, o método de ensino de Escrita Criativa mudou de intrínseco para extrínseco. Modismos na teoria literária desviaram os escritores da estória em direção à linguagem, código, texto – a estória vista de fora. Como resultado, segundo Robert Mckee, “salvo algumas notáveis exceções, a geração atual de roteiristas foi mal-educada nos princípios fundamentais da estória” (2007: 29).

Desde a estreia em Cannes, onde foi bem recebido, o  filme causou alvoroço por conter longas e picantes cenas de sexo protagonizadas por Adèle Exarchopoulos, atriz que interpreta Adèle – a Clémentine dos quadrinhos – e Léa Seydoux, que vive Emma. Pessoas mais sensíveis acham que “é uma das mais belas histórias de amor que eu já vi em close-ups.”

A atriz de origem grega Adèle Exarchopoulos, 20 anos de idade, empresta o nome à protagonista, inspirada nos quadrinhos de Julie Maroh. Ela interpreta uma estudante de literatura em crise, que recusa o interesse de um colega do colégio ao cruzar olhares com Emma (Léa Seydoux), a garota de cabelos azuis.

A aproximação entre as duas se dá em flerte na rua e, depois, em um bar frequentado por lésbicas. Depois, um encontro no parque e o primeiro beijo. O interesse curioso de Adèle se torna uma paixão avassaladora. O mundo mais prosaico dela, no entanto, destoa do ambiente intelectual de Emma.

Pois é, eu entrei nessa “roubada” de maneira desavisada. Resolvi assistir ao filme logo que soube que tinha ganhado o Prêmio do Festival de Cinema de Cannes no ano de 2013. Evitei ler a critica para não influenciar minha avaliação. Por isso, surpreendi-me: o filme não acabava nunca! Foram 3 horas de mexe-mexe, fuque-fuque, geme-geme, kama-sutra aeróbica — e close em gente comendo de boca aberta!

“Adèle beija Emma. A câmera quase encosta nas duas, que aparecem nuas em seguida. Elas trocam carícias e soltam gritos abafados, misturados aos estalos das bocas. Emma faz sexo oral em Adèle, que agarra os cabelos azuis de Emma. A câmera passeia entre as duas, próxima, buscando expressões. O ritmo fica mais acelerado, os movimentos, mais bruscos, e os gemidos, mais altos. Não há música, o que intensifica o realismo.” Realismo?! Interpretação “naturalista” em cenas cinematográficas de sexo?! DisgustingSexo é bom de se praticar, mas enjoa ficar só vendo, tal como entedia ver esportes individuais.

Os quase sete minutos de cenas de sexo do longa francês “Azul É a Cor Mais Quente”, repetidas pelo menos três vezes, viraram alvo de críticas de feministas e lésbicas – além das minhas, é claro. Segundo esses grupos, houve exploração do corpo das atrizes como objetos sexuais e apelo pornográfico, além de as cenas não traduzirem a realidade de uma relação sexual entre mulheres.

O diretor Kechiche rebateu as críticas da seguinte forma. “Quem me julgou não aceita o fato de um diretor retratar o amor entre duas mulheres”. Menos, menos

Kechiche afirma que se trata de um ritmo natural baseado na sua percepção. “Busquei os melhores ângulos a fim de retratar as expressões que não podem ser transmitidas pelas palavras”, diz. E eu gosto de exibicionismo de virtuosismo?! Embaixadinhas com a bola em pleno jogo coletivo?!

Entendi depois, ao ler os comentários sobre o filme, algo que me incomodou enquanto assistia aquela longa “interpretação naturalista” das adolescentes-atrizes: não era natural! Após a premiação em Cannes, a atriz Léa Seydoux acusou o diretor de truculência e assédio moral.

Na tela, a pele das atrizes, que não usaram maquiagem nas filmagens, em foco, parece “natural”. No entanto, diz Adèle, “percebi que o diretor queria que eu mexesse no cabelo, brincasse com a boca”, esclarecendo a obviedade que havia uma orientação nesse sentido, mas que ela também ajudou a modelar o jeito sensual da personagem.

Diretor de outros quatro longas, entre eles “O Segredo do Grão” (2007) e “Vênus Negra” (2010), Abdellatif Kechiche é meticuloso com sua estética e exigente com atores. Fala do cinema como a arte das limitações, que deve respeitar uma duração determinada, ao contrário de uma pintura ou de um livro. Mas ele não respeitou essa “duração determinada”, isto é, convencional, de duas horas! Se ele tivesse feito cortes na edição para ficar nesse tempo menor, o filme poderia ser até melhor…

Vejo os exemplos de séries de TV adultas, tais como House of Cards, Homeland, e Masters of Sex, cujos ótimos roteiristas – parece que fugiram dos estúdios de Hollywood para os estúdios de TV –, concentram-se (e condensam) em cada episódio de 50 minutos o clímax adequado. Na temporada, com uma dúzia de episódios, sua duração propicia diversas reviravoltas nos roteiros que surpreendem (e agradam) os telespectadores.

O filme de Kechiche quer exalar sensualidade até em cenas casuais, como quando Adèle se lambuza de macarrão, e o diretor gruda a câmera nos lábios dela. E tome cenas de gente francesa mal-educada, comendo e conversando de boca cheia…

Quando o diretor foi questionado sobre os desentendimentos com a atriz Léa Seydoux, 28 anos de idade, a respeito da reclamação, por exemplo, da alongada cena de sexo, que demorou dez dias para ser filmada, com repetição exaustiva dos movimentos, ele respondeu da seguinte forma sobre seu voyeurismo. “Ela chegou ao topo compartilhando a conquista de uma Palma de Ouro e agora vai demolir o diretor que a alçou a essa posição?”. Pode?!

Léa disse que não voltaria a trabalhar com o diretor por seus “métodos truculentos”. Ao jornal inglês “The Independent“, a atriz afirmou que as cenas de sexo foram humilhantes e que tanto ela quanto Adèle Exarchopoulos se sentiram como “prostitutas”.

Kechiche nega as acusações, mas chegou a pensar em desistir do lançamento do filme. Em outubro, escreveu uma carta aberta no site francês Rue89, na qual chama Léa de “arrogante e oportunista”.

Segundo Kechiche, o problema não será resolvido. “A polêmica foi criada para ela [Léa Seydoux] se promover. Nesse período, ela foi capa de revistas na França. Talvez os motivos tenham mais a ver com classes sociais.” Apelar para a luta de classes?!

O diretor é de origem africana e a atriz vem de família tradicional, segundo ele. O avô da atriz, Jérôme Seydoux, é um dos donos da companhia cinematográfica Pathé. Antes de estrelar “Azul, A Cor Mais Quente”, Léa trabalhou com Woody Allen em “Meia-Noite em Paris” (2011) e Ridley Scott em “Robin Hood” (2010).

A atriz precisa se promover?! Ela decidiu se afastar da campanha de promoção do filme.

Adèle, a atriz de 20 anos, por sua vez, que havia se juntado na crítica contra o diretor, agora tem adotado outro tom. Disse que “as cenas de sexo foram descontraídas”. Conta outra

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A ideia psicanalítica de “crise do desenvolvimento” propõe que os períodos de desenvolvimento normal não se interrompem com a infância, mas continuam durante os anos da idade adulta. Segundo esse pensamento, existe certa série de etapas ou períodos, cada qual apresentando determinada oportunidade para novo crescimento.

Ocorreria “crise do desenvolvimentoquando a pessoa tem de enfrentar nova tarefa na vida ou nova série de opções. Assim, ela chegou a ponto crucial ou momento decisivo. Importante: “ponto decisivo para melhor ou pior”. Quando o ser humano chega a este ponto crítico pode conseguir a vitória ou ser derrotado.

Os pesquisadores do comportamento individual começaram a reconhecer que tanto o período da adolescência quanto o período da meia-idade é época extraordinariamente importante de mudança, marcada pela confusão mental e introspecção.

É a época em que maioria dos seres humanos é acometida de dúvidas fundamentais sobre o que quer de fato viver. São angústias semelhantes às que experimentam os adolescentes. Neste caso, trata-se da passagem da idade infantil para a adulta; no outro caso, do período da vida que marca a passagem da idade adulta para a meia-idade. Em ambos, constitui período de transição.

A perda de ilusões é desalentadora e o colapso da velha estrutura de vida dói. Mas as dolorosas dificuldades são os sinais de crescimento: seu velho mundo acha-se abalado porque ele cresceu demais.

A palavra “adolescência” significa literalmente “brotar”. Na teoria psicanalítica, descreve um estágio distinto entre a infância e a vida adulta, mas na prática define apenas o período dos 13 aos 19 anos de idade.

Na maior parte do Ocidente, o conceito de adolescência não foi reconhecido até o século XX. Antes dele, a infância terminava quando a vida adulta começava, em determinada idade, geralmente, 18 anos.

Influenciado pela teoria darwinista da evolução, Granville Stanley Hall (1844-1924) acreditava que todas as infâncias, sobretudo no que diz respeito a comportamento e desenvolvimento físico inicial, refletiam o curso de mudanças evolucionárias. Cada um de nós se desenvolvia de acordo com nosso “arquivo ancestral”.

Para Hall, a adolescência era um estágio de agitação emocional e de rebelião, no qual o comportamento variava entre mau humor silencioso e atitudes selvagens e arriscadas. O envolvimento com o crime é mais comum nessa fase, atingindo seu ponto máximo aos 18 anos. A adolescência, declarou ele, “anseia por sentimentos fortes e sensações novas… monotonia, rotina e detalhes lhes são intoleráveis”.

A consciência de si e do ambiente intensifica-se muito. Tudo é sentido de maneira mais aguda, busca-se a sensação por si mesma.

O psicólogo acreditava que os adolescentes são altamente suscetíveis à depressão. Propôs uma curva da desesperança, cujo início é aos 11 anos de idade, atinge o pico aos 15 e, a partir daí, começa a decair de modo regular até os 23 anos.

As causas da depressão identificadas por Hall são:

  1. Suspeitas de rejeição;
  2. Falhas de caráter aparentemente insuperáveis;
  3. Fantasia com um amor inatingível.

Para Hall, a autoconsciência adolescente leva à autocrítica e à censura de si e dos outros. As habilidades de raciocínio avançadas dos adolescentes permitem que eles “leiam nas entrelinhas”, mas, ao mesmo tempo, ampliam a sensibilidade com que enfrentam as situações. 

“A adolescência é um novo nascimento, uma vez que os traços humanos mais elevados e completos têm nela sua origem”. A adolescência é, na verdade, um começo necessário de algo muito melhor.

É válido o conselho provocativo de Nelson Rodrigues. “Jovens, envelheçam…”

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Post-Scriptum:

Ignácio Araújo (Folha de S. Paulo, 06/12/13) acha o filme ótimo, ao contrário do que eu, Fernando Nogueira da Costa, acho. Vale ler sua avaliação para confrontar com a minha.

O que é um homem? Um ser que procura a si mesmo. Essa é a ideia mais evidente contida nas imagens e nas várias referências literárias de “Azul É a Cor Mais Quente“, de Marivaux a Sófocles, de Rimbaud a Alain Bousquet.

Comecemos pela literatura, com um fragmento do poema de Bousquet que Adèle a horas tantas ensina a seus alunos de pré-primário: “Para o que serve o pescoço da girafa? Para alcançar as estrelas”. Ou, podemos pensar: para o que serve a sexualidade de Adèle? Para o prazer.

Mas o que é o prazer? Como alcançá-lo? Eis um drama pelo qual todo adolescente passa: o momento da descoberta do sexo, quando não há mais amigos, pais ou guias que nos amparem. Estamos sozinhos.

De certa forma é o momento de saber quem somos. É o que diz a professora que analisa a “Antígona” de Sófocles: neste momento, o de abandonar a infância, Antígona descobre-se diante da tragédia. Pois o trágico nada mais é do que isso: o inelutável.

Eis o trágico da bela adolescente: Adèle descobre-se mais atraída por garotas do que por rapazes. Quando transa com um é como se algo lhe faltasse – ela diz. Quando cruza na rua com Emma (Léa Seydoux), a menina dos cabelos azuis, a atração é imediata.

Eis o que Abdellatif Kechiche nos traz neste filme: a condição trágica. A impossibilidade, para Adèle (Adèle Exarchopoulos), de escapar à sua sexualidade. Ou seja, à sua homossexualidade.

Tudo isso, no entanto, poderia resultar num filme gay desinteressante como existem às pencas. Kechiche não é um doutrinador, um defensor de causas. É um cineasta, alguém que mostra. O que há de especial em Adèle, por um lado, é a força, a clareza com que caminha em busca de si mesma. E por outro lado, seu sorriso.

Pois este é um filme, sobretudo, de primeiros planos, de rostos. Do sorriso tão especial, tão aberto de Adèle. E que pode ser comparado, talvez, ao sorriso conquistador de Emma. Como descrevê-los? Não há muito a fazer: eis a riqueza do filme, de sua opção por uma relação estrita com a imagem, com o real.

Ele pode nos levar a uma bela cena de amor entre as duas moças, é verdade (talvez seja o principal ponto de venda do filme). Mas é ao retomar a ideia proclamada por Eric Rohmer de que o cinema foi a arte clássica do século 20, que o filme assume plenamente sua originalidade.

A relação do cinema com a realidade, desde os anos 80 do século passado, tornou-se progressivamente mais tênue. Parece que cada vez menos os cineastas conseguem captar o óbvio: o corpo humano, seus sorrisos, sua batalha para descobrir sua própria medida, sua estatura.

O que há de fascinante neste Azul-Kechiche é a veemência com que o autor, mais uma vez, afirma sua modéstia diante de suas personagens, como lhes permite, e ao mundo que habitam, se manifestarem na tela e irradiarem no espírito dos espectadores.

Azul...” é o filme que mais se destaca neste ano tão fraco, de 2013. Mesmo que fosse um ano forte, seria, ainda assim, um filme especial: desses cujas imagens, aparentemente tão simples, chegam a nossos olhos, encantam, não se deixam esquecer.

(P.S.: Pessoalmente, penso na morena da escola de Adèle, com quem ela troca um beijo. A menina explicará que aquilo foi um momento a ser esquecido. Depois, quando outras colegas cercam Adèle e a chamam de lésbica nojenta, a garota aparece à distância, só seu rosto, em silêncio: em que estará pensando? – são esses momentos laterais que, muitas vezes, fazem os grandes filmes).”

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