Autobiografia de Federico Sánchez

Duarte Pereira, 72 anos, é jornalista e escritor. Escreveu belo obituário sobre a morte de Jorge Semprun, publicado no dia 10 de Junho de 2011 no Correio da Cidadania. Como Semprun e seu companheiro de militância, Fernando Claudin, foram autores importante na minha formação política anti-stalinista nos anos 70, transcrevo seu texto abaixo como introdução de uma citação de Jorge Semprun.

“Jorge Semprún, militante destacado do Partido Comunista Espanhol durante os anos difíceis do franquismo e escritor de grande talento, faleceu em Paris na terça-feira, 7 de junho, aos 87 anos. Sofria, há alguns meses, de um tumor no cérebro.

De Semprún pode ser lida em português sua famosa Autobiografia de Federico Sánchez (tradução de Olga Savary, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1979). O livro ultrapassa as reminiscências de sua militância no Partido Comunista Espanhol e da resistência democrática e popular ao regime franquista.

Como destaca Semprún no primeiro capítulo do livro, “o tema das relações do intelectual com o partido, e mais amplamente com o movimento operário em geral, é um dos assuntos principais deste ensaio de reflexão autobiográfica” (p. 18).

E acrescenta com precisa ironia, verberando os preconceitos obreiristas difundidos nos partidos comunistas da época: “Isso de ‘intelectual’ na verdade é faca de dois gumes. Serve como um elogio ou como um anátema” (Ibidem). Mas não falta às memórias do militante e escritor espanhol a coragem também da autocrítica: “Eu tenho sido um intelectual stalinizado. É bom saber que eu o fui e explicar porque o fui” (p. 21).

Jorge Semprún nasceu em Madri, capital da Espanha, em 1923. Filho de um ministro do governo republicano, ele e sua família foram obrigados a exilar-se após a derrota da Frente Popular na guerra civil e a instalação do regime fascista sob o comando do general Franco em 1939. Passaram pela Suíça e pela Holanda, fixando-se finalmente em Paris, na França, onde o jovem espanhol aderiu ao Partido Comunista em 1941 e, logo em seguida, à Resistência francesa. Preso pela Gestapo em 1943, foi deportado para o campo de concentração de Buchenwald num trem abarrotado de prisioneiros. Essas experiências, apesar de penosas, não o abateram e inspirariam mais tarde seu primeiro romance, A Grande Viagem.

Com a libertação da França e a derrota do nazismo, regressou a Paris, de onde viajava com freqüência e identidade falsa para a Espanha, a serviço do Partido Comunista Espanhol, vindo a integrar o Comitê Executivo do Comitê Central do partido de 1956 a 1964. Assumindo posições contrárias ao stalinismo cada vez mais incisivas, e divergindo da orientação seguida pelo partido sob a liderança de Santiago Carrillo, acabou sendo excluído da organização, passando a dedicar-se à literatura e ao cinema.

Escreveu romances em língua espanhola ou francesa, vários premiados, como o livro já referido, que ganhou o Prêmio Planeta de 1977, A grande viagem, de 1963, ou A Segunda Morte de Ramón Mercader, de 1969. Foi autor também de roteiros cinematográficos muito elogiados, como o do belo filme A Guerra Acabou, de 1966, dirigido por Alain Resnais e interpretado por Yves Montand, ou os dos consagrados filmes de Costa-Gavras, Z, de 1968, e A Confissão, de 1970.

Com a derrocada do regime franquista, retornou à Espanha, ocupando o cargo de ministro da Cultura de 1988 a 1991, no governo social-democrático de Felipe Gonzalez. Nos últimos anos, tornou-se ardoroso partidário da unificação européia.

Não é preciso concordar inteiramente com um militante e intelectual para respeitar sua trajetória, admirar sua obra e aprender com suas experiências e reflexões. O século XX, com seus abalos, avanços e retrocessos, não foi fácil ou retilíneo, nem para as lutas sociais, nem para as biografias de seus protagonistas.

Jorge Semprún, um desses protagonistas como comunista ou como democrata, como ativista ou como escritor, merece, apesar das divergências que se possa ter com algumas de suas posições e escolhas, o reconhecimento de todos os militantes proletários e intelectuais críticos que não desistiram de lutar por sociedades autenticamente democráticas e socialistas”.

Autobiografia de Federico Sánchez é, na verdade, a autobiografia de Jorge Semprún datada de 1977. Sua ironia cortante resulta em terapêutica curativa dos seus traumas recalcados dos tempos passados no seio do Partido Comunista Espanhol (PCE), em 11 anos de dura clandestinidade [1953/1964] na ditadura de Franco. Como era comum o expurgo de militantes comunistas, acabou expulso em 1964 como um “dissidente”, juntamente com Fernando Claudin, por discrepância com a linha oficial de Dolores Ibárruri, “La Passionária”, e Santiago Carrillo. Em história real, contada sem temor do que seria considerado politicamente correto pela esquerda stalinista, disseca com fatos vividos o mau caráter de ícones espanhóis do comunismo internacional.

Cito passagem na página 143 em que Jorge Semprun critica o culto à personalidade típica da tradição stalinista:

“O Partido resume tudo. Nele se sintetizam os sonhos de todos os revolucionários ao longo de nossa história; nele se concretizam as idéias, os princípios e a força da revolução; nele desaparecem nossos individualismos e aprendemos a pensar em termos de coletividade; ele é nosso educador, nosso mestre, nosso guia e nossa consciência vigilante, quando nós mesmos não formos capazes de ver nossos erros, nossos defeitos e nossas limitações; nele nos tornamos um todo e nos tornamos, cada um de nós, um soldado espartano da mais justa das causas e, todos juntos, um gigante invencível; nele, as idéias, as experiências, o legado dos mártires, a continuidade da obra, os interesses do povo, o futuro da pátria, e os laços indestrutíveis com os construtores proletários de um mundo novo em todos rincões da Terra estão garantidos”.

São palavras de Fidel Castro, Primeiro Secretário do PCC, Primeiro Ministro, Comandante em Chefe dos Exércitos de Terra, Mar e Ar, Primeiro Jogador de Basquetebol, Primeiro Especialistas de Vaca Leiteira, Primeiro Agricultor e Machetero, no Primeiro Congresso do PC de Cuba.

São palavras significativas, duplamente significativas. Primeiro, porque resumem luminosamente com gotas de retórica castelhana, que ressaltam a solenidade quase religiosa do parágrafo, toda a tradição do partido stalianiano, cujas características foram codificadas na época do Komintern. E, em segundo lugar, porque são pronunciadas por Fidel Castro, caudilho popular e populista, combatente valoroso que não procede precisamente dessa tradição, porém que acabou tomando-a para si, fantasmaticamente, à medida que a Revolução Cubana perdia sua substância originária, se afastava de seus fins libertadores, para se converter em outro regime burocrático de capitalismo de Estado, com seus traços específicos, claro, mas essencialmente ajustado ao modelo social da União Soviética e dos países do Leste Europeu.

Naturalmente, ao sintetizar liricamente o que é o Partido (a maiúscula é de Castro: também nisto se ajusta à tradição), ao glorificá-lo e deificá-lo, Fidel Castro silencia sobre um aspecto essencial de semelhante concepção da vanguarda comunista: a necessidade de se ter na cúpula da organização um Chefe Máximo, um Grande Timoneiros, um Generalíssimo, um Primeiro Secretário. Na realidade, todas as virtudes que Fidel Castro atribui ao Partido são suas próprias virtudes pessoais – reais ou supostas, porém consubstanciadas a este tipo de dirigente carismático da revolução – são as suas próprias virtudes teologais. Quando se está falando do Partido, Fidel Castro está fazendo seu auto-retrato imaginário: o partido é seu ego e seu super-ego. O Partido resume-o todo e Ele resume o Partido e nele o Partido se consome, ou seja, é consumido e consumado”.

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