Sunitas e xiitas no Irã e no Iraque

BurnaQuando conquistaram o Irã, no começo do século XVI, os Safávidas fizeram do xiismo a religião oficial do Estado. Até então o xiismo era um movimento esotérico intelectual e místico, e seus adeptos tinham por princípio manter-se à margem da política. Sempre houve importantes (e poucos) centros xiitas no Irã, porém as maiorias de seus membros eram árabes, não persas. O experimento dos Safávidas constituiu, portanto, uma extraordinária inovação.

Sunitas e xiitas se diferenciavam no tocante à postura, não à doutrina. A visão da história muçulmana era basicamente otimista entre os sunitas e mais trágica entre os xiitas, para os quais o destino dos descendentes de Maomé se convertera em símbolo da luta cósmica entre o bem e o mal, a justiça e a tirania, com os maus prevalecendo.

Enquanto os sunitas transformaram a vida do Profeta em mito, os xiitas mitificaram a vida de seus descendentes. Para compreender o xiismo – e acontecimentos como as Revoluções Iranianas de 1978-79, Karen Armstrong afirma que tem de examinar sucintamente sua história.

Quando Maomé morreu, em 632, a questão de sua sucessão estava em aberto, e a maioria da ummah elegeu para o califado seu amigo Abu Bakr. Alguns acreditavam, porém, que o Profeta preferiria ter como sucessor Ali ibn Abi Talib, que era seu parente mais próximo (primo e genro), além de seu pupilo. Preterido em várias eleições, Ali finalmente se tornou o quarto califa, em 656.

Os xiitas, contudo, não reconhecem os três primeiros califas e o chamam de Primeiro Imame (“líder”). Indubitavelmente piedoso, Ali escreveu a seus dignitários cartas inspiradoras, enfatizando a importância do governo justo. Em 661 foi assassinado por um extremista muçulmano, e tanto sunitas quanto xiitas lamentaram o trágico acontecimento.

Seu rival, Muawiyyah, assumiu o califado e fundou a dinastia dos Omíadas, com sede em Damasco. Hasan, o primogênito de Ali, a quem os xiitas chama de Segundo lmame, abandonou a política e, em 669, morreu em Medina.

Quando o califa Muawiyyah faleceu, em 680, ocorreram em Kufa, no Iraque, grandes manifestações favoráveis a Husain, o segundo filho de Ali. A fim de evitar represálias por parte dos Omíadas, Husain se refugiou em Meca, mas o novo califa Omíadas, Yazid, enviou emissários para assassiná-lo, profanando, assim, a cidade santa.

Considerando a necessidade de posicionar-se contra esse governante injusto e ímpio, Husain, o Terceiro Imame dos xiitas, partiu para Kufa, com um pequeno grupo de cinquenta seguidores, que levaram suas esposas e Mos. Acreditava que o pungente espetáculo da família do Profeta marchando em oposição à tirania reconduziria a ummah a uma prática mais autêntica do islamismo. Mas durante o jejum sagrado do Ashura, o décimo dia do mês de Muharram, tropas dos Omíadas cercaram e massacraram o pequeno exército de Husain na planície de Kerbala, arredores de Kufa. Husain foi o último a morrer, segurando nos braços seu filho, ainda bebê.

A tragédia de Kerbala teria seu próprio culto e se tornaria um mito, um fato intemporal na vida de todo xiita. Yazid se converteu em emblema da tirania e da injustiça. No século X, os xiitas comemoravam anualmente o martírio de Husain no jejum do Ashura, quando choravam, espancavam-se e declaravam sua eterna oposição à corrupção da política muçulmana. Poetas escreveram elegias em homenagem aos mártires, Ali e Husain.

Assim, os xiitas criaram uma devoção de protesto, centrada no mythos de Kerbala. O culto mantinha vivo um apaixonado anseio de justiça social que está no âmago da visão xiita. Quando marcham em procissão solene durante os rituais do Ashura, os xiitas proclamam sua determinação de seguir Husain e até mesmo morrer na luta contra a tirania.

Demorou algum tempo para surgirem o mito e o culto. Nos primeiros anos posteriores a Kerbala, o filho de Husain, Ali, que conseguira sobreviver ao massacre, e seu filho Muhammad (chamados, respectivamente, de Quarto e Quinto Imames) instalaram-se em Medina e não participaram da vida política.

Entrementes, Ali, o Primeiro Imame, se transformara num símbolo de retidão para muita gente insatisfeita com o governo dos Omíadas. Quando finalmente derrubou os Omíadas, em 750, e fundou sua própria dinastia (750-1260), a facção dos Abássidas se declarou pertencente ao Shiah-i Ali (Partido de Ali). O Shiah [xiismo] também estava associado com especulações mais fantasiosas, que a maioria dos muçulmanos considerava “extremas“.

No Iraque, os muçulmanos haviam tido contato com um mundo religioso mais antigo e mais complexo, e alguns sofreram influências da mitologia cristã, judaica ou zoroástrica. Em alguns círculos xiitas, Ali era venerado como uma encarnação do divino, semelhante a Jesus.

Os xiitas rebeldes acreditavam que seus líderes não tinham morrido, mas estavam escondidas (ou “na ocultação“) para voltar um dia e conduzi-los à vitória. Outros se encantavam com a ideia do Espírito Santo incorporando-se em um ser humano e concedendo-lhe sabedoria divina. Todos esses mitos, modificados, seriam importantes para a visão esotérica do Shiah.

O culto a Husain transformou uma tragédia histórica em um mito crucial para a visão religiosa dos xiitas. Dirigiu a atenção dos devotos para uma luta incessante, mas invisível entre o Bem e o Mal, travada no centro da existência humana. Os rituais liberaram Husain das circunstâncias específicas de sua época e o converteram em presença viva, assim como em símbolo de uma verdade profunda.

Entretanto, a mitologia do xiismo não tinha aplicação prática no mundo real. Mesmo quando governantes xiitas como os Abássidas tomaram o poder, as duras realidades da política os impediram de governar em consonância com esses ideais elevados.

Os califas Abássidas tiveram grande sucesso no plano material, mas logo após sua ascensão abandonaram o radicalismo xiita e se tornaram sunitas comuns. Não se mostravam mais justos que os Omíadas, porém os verdadeiros xiitas nada podiam fazer, pois toda rebelião era violentamente reprimida. O próprio mito de Husain parecia sugerir que qualquer tentativa de oposição a um governante tirânico estava fadada ao fracasso, por mais devota e sequiosa de justiça que fosse.

Karen Armstrong termina esse capítulo sobre o Islamismo, “Em Nome de Deus”, argumentando que, ao terminar o século XVIII, quando ocorria a Revolução Industrial na Inglaterra, os impérios otomano e iraniano estavam desorganizados. Haviam sucumbido ao destino inevitável de uma civilização agrária que excedera seus recursos.

Desde a Era Axial, o espírito conservador ajudava homens e mulheres a aceitarem num nível profundo as limitações desse tipo de sociedade. Isso não significa que as sociedades conservadoras eram, estáticas e fatalistas. A espiritualidade havia levado o mundo islâmico a grandes conquistas culturais e políticas.

Até o século XVII, o Islã era a maior potência mundial. Todavia, esse esforço político, intelectual e artístico tivera lugar em contexto mitológico estranho aos valores da nova cultura ocidental que se desenvolvia na Europa. Muitos dos ideais da Europa moderna seriam caros aos muçulmanos.

Olhos verdes IIKaren Armstrong mostrou que sua fé os incentivara a adotar valores semelhantes aos do Ocidente moderno: justiça social, igualitarismo, liberdade individual, espiritualidade de bases humanas, política secular, fé privatizada, cultivo do pensamento racional. Outros aspectos da nova Europa, porém, dificilmente teriam aceitação em um etos conservador.

No final do século XVIII, os muçulmanos eram intelectualmente atrasados em relação ao Ocidente. Como os impérios islâmicos também estavam politicamente enfraquecidos, seriam vulneráveis aos Estados europeus que tentavam conquistar a hegemonia mundial.

Os ingleses já haviam se instalado na Índia, e a França estava decidida a criar seu próprio império. Em 19 de maio de 1798, Napoleão Bonaparte zarpou de Toulon com 38 mil homens e quatrocentos navios para desafiar o poderio britânico no Oriente. Depois de cruzar o Mediterrâneo, desembarcou em Alexandria, no dia 1° de julho, e, à frente de 4300 soldados, tomou a cidade na madrugada seguinte.

Assim, conquistou uma base no Egito. Napoleão levara consigo um grupo de estudiosos, uma biblioteca da moderna literatura europeia, um laboratório científico e um prelo com caracteres arábicos. A nova cultura científica e secularista do Ocidente invadira o mundo muçulmano, que nunca mais seria o mesmo.

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