Realpolitik: Continuidade do Presidencialismo de Cooptação

O Leopardo”, livro de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, tornou-se muito citado por uma frase não de don Fabrizio Corbera, o príncipe de Salina, e sim de seu sobrinho, Tancredi. Na página 57, na tradução de Marina Colasanti, publicada com o título de “O Gattopardo” (Record, 300 páginas), Tancredi diz para o tio, Fabrizio Corbera: “Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a República. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”

Espanta mais ao ler as entrevistas dos assessores econômicos dos candidatos à Presidência da República é a ingenuidade deles — e de seus (e)leitores — em achar poderem fazer todas as mudanças propagandeadas. As lógicas de suas ações não só se submeterão às instituições, sejam formais-democráticas, sejam informais como os costumes políticos, mas também serão capturadas pelo chamado Presidencialismo de Cooptação. Quem viver, verá

O ministro da Justiça, Torquato Jardim, com oito anos de experiência no tribunal eleitoral mais importante, o TSE, onde ocupou vaga destinada a jurista, tem uma visão realista sobre os desafios que se colocam para as eleições de outubro de 2018. “O presidencialismo de cooptação não vai mudar com as eleições, seja quem for o escolhido“, afirma.

O próximo outubro dificilmente produzirá uma liderança para reconstruir o país, prevê, se estiverem certas as previsões de renovação de apenas 40% dos mandatos. Entre os desafios que se colocam aos eleitos está o resgate do poder político, assumido pelas corporações, para o Executivo e o Legislativo.

Torquato concedeu uma entrevista para Rosângela Bittar (Valor, 04/07/18). Edito-a destacando o mais interessante.

Com a proximidade das eleições, a falta de candidatos em quem se pode votar está exasperando a maioria dos brasileiros. Estes respondem às pesquisas negando a votação: em branco, nulo, indeciso, nenhum.

São 26 partidos, nenhum deles com fundamento ideológico ou programa. Eles são, na verdade, uma estrutura formal que acolhe grupos de interesse. Há um partido apenas de vocação parlamentar, o MDB, que não tem candidato a presidente desde 1989, quando Ulysses Guimarães teve aquela performance pífia. Tem uma bancada muito grande, é o partido que mais tem prefeituras, mas não tem um único cacique nacional, outro traço que o distingue.

No quadro de outubro próximo, os outros partidos todos só têm uma pessoa referencial. Dê-se o nome de caudilho, de cacique, mas têm uma única figura referencial!

A figura referencial do candidato hoje em primeiro lugar das pesquisas, Jair Bolsonaro, é ele mesmo, o partido dele [PSL] é ele; o PTB é o [Roberto] Jefferson; o PT é Lula, o PDT, desde que Leonel Brizola se foi, não tem mais ninguém.

Lula pode ser a referência do PT para o eleitorado mesmo na prisão. O Nelson Mandela foi referencial nos 29 anos de cadeia, depende de como se faz o trabalho institucional.

Esse “cenário de terra arrasada” nas eleições de outubro, um capturado pelo centrão direitista, um à extrema-direita e dois apenas nominalmente à esquerda sem serem de esquerda, pediria revisões urgentes das instituições, da legislação eleitoral, da Constituição. Mas o que temos para outubro de 2018, além do quadro partidário com dezenas de partidos, é o que se coloca para além de outubro: os desafios. O presidencialismo de cooptação não vai mudar.

Seja quem for eleito vai continuar havendo uma preeminência da Câmara dos Deputados em contraste ao Executivo. Nos diferentes Executivos o poder é muito concentrado, mas isso não implica primazia no Parlamento. O Parlamento é totalmente independente. Não há um partido, dois, três ou quatro que dominem. O agrupamento é temático. [por exemplo, bancadas BBBB – Boi, Bíblia, Bala, Bola, leia mais em: Dinastias Políticas na Câmara dos Deputados e Senado Federal]

A Lava-Jato e seus congêneres desconstruíram as instituições e não colocaram nada no lugar. A operação revelou tanto o uso político como corporativo do Estado. Deu protagonismo à Polícia Federal, ao Ministério Público, ao Judiciário, à mídia que faz denúncia, mas nenhuma dessas instituições colocou nada no lugar do que foi destruído. Qual partido ou político está a salvo das críticas? Nenhum. A eleição de outubro não terá solução para isso.

O poder político-partidário foi assumido pelo Judiciário e esse é outro desafio das eleições de outubro: o poder político perdeu para o Judiciário partidarizado. Hoje, a liderança política está no Judiciário federal. Primeira instância, segunda e STF. Há uma superioridade política de quem não tem mandato e não está vinculado a nenhum grupo senão a si mesmo.

Veja o STF, com três plenários (pleno, primeira e segunda turmas) e 11 cabeças. Não diz ele ser partidário. É um Judiciário politizado mas não partidarizado, com protagonismo político. Ele cede a um corporativismo, individual ou a si mesmo. Há três anos e meio não sabemos se o auxílio moradia é constitucional ou não. Aí vemos magistrados que querem ser paladinos da legalidade recebendo auxílio quando são donos dos apartamentos onde moram.

Desde 1994, o Executivo se preocupa com o avanço do corporativismo que hoje trava a ação das instituições, mas não se conseguiu detê-lo. Eis aí mais um desafio das eleições de outubro: o custo dos avanços corporativistas do setor público.

O Judiciário, que já tem benefícios, está fazendo campanha para aumento salarial de mais 16 %. As aposentadorias do setor público são em média 10 a 12 vezes maiores que as do setor privado. O dia que o trabalhador brasileiro souber que trabalha para pagar aposentadoria do setor público vai ser”A Queda da Bastilha” no Brasil.

Com a desconstrução do político, há o avanço do corporativismo no Ministério Público, no Tribunal de Contas da União, nas carreiras principais do serviço público. Veja a dificuldade em controlar corporativismo na Receita Federal, na Advocacia-Geral da União. Por que o advogado público participa agora da sucumbência? Ele não é advogado no sentido próprio. Ele é um servidor público.

As eleições não vão resolver esse problema. É grande o esforço dessas corporações para ter seus próprios candidatos. Em praticamente todos os Estados há delegados candidatos, militares candidatos, etc. Essas são as grandes incógnitas de outubro.

São muito mais importantes que “fake news“. Mas é bom que estejam preocupados com as “fake news” também, vamos ver se as autoridades eleitorais encontram algum mecanismo para controlar o problema.

Essa avaria que não pode ser consertada por eleições gerais é uma evidência de ser preciso uma revisão constitucional radical. A Constituinte de 1988 se fez com dois defeitos de origem.

Primeiro, olhar no retrovisor e escrever a negação do passado.

Segundo, não havendo nenhum partido prevalente, nenhuma ideia prevalente, nenhum líder prevalente, na falta de voto de uma maioria estável para aprovar alguma coisa, aprovaram tudo.

Por exemplo, os parlamentaristas não tinham votos suficientes para aprovar o parlamentarismo. Os monarquistas também não tinham votos suficientes para aprovar a monarquia. Aí criaram o plebiscito cinco anos depois. Se concederam mais cinco anos para tentar ganhar a parada.

Mas a saída pelas brechas não é novidade, é um traço marcante até das instituições: no Supremo, quando um ministro pressente que vai perder, puxa a votação para outro plenário onde pode se dar bem. Mas esse não é o STF histórico, antes não acontecia isso. É o STF agora.

Atribuem-se à Constituição de 1988 inclusive responsabilidades pelo desajuste das contas públicas. Uma conta chegada de 1988, por exemplo, é a previdenciária. A repartição de tributos também. Você passa uma lei onde o governo federal absorve a dívida dos municípios. Empresas podem deduzir de tributos federais a base de cálculo do ICMS. São mais de R$ 9 bilhões de déficit na Receita Federal.

Precisamos, sim, de uma reforma constitucional, mas uma reforma refletida e conduzida por partidos e personalidades políticos com grandeza. A pergunta é, surgirá da eleição dois ou três partidos com essas personalidades que vão pensar seriamente o modelo constitucional? Uma liderança para reconstruir o Brasil? Hoje, não.

A troca de comando no Supremo Tribunal Federal, com a eleição de Dias Toffoli em setembro, deseja fazer uma administração colegiada, mas ele não tem como fazer isso. Historicamente são duas turmas e um plenário, seria uma revolução muito grande fazer isso. Só se se reduzisse muito a competência do STF e ele fosse exclusivamente uma corte constitucional, aí poderia se falar de um plenário único sem turma. Mas há muita esperança com a administração Toffoli.

Com base em que ele vem da advocacia, é uma pessoa pragmática. Já viveu a política. Sabe o que é governo, sabe o que é orçamento, o que é conviver e compatibilizar. Isso é inerente nele. Ele tem muito bom diálogo com os colegas do Tribunal, não teme conversar com o Executivo e o Legislativo. Ele é talhado para o diálogo e cria ambiente até para uma dissidência respeitosa. E vai ensejar não só anuência como divergência. Torquato muita esperança na presidência dele.

Há os três Poderes tradicionais, mas no vácuo do Legislativo e do Executivo, surgiram três instituições que ocuparam o espaço constitucional: Ministério Público, Polícia Federal e Tribunal de Contas da União. O MP e a PF não são instituições no sentido próprio, porque uma instituição conhece o princípio fundamental da hierarquia e eles pretendem agir sem hierarquia. Cada procurador é um procurador.

Quando Torquato estava no Ministério da Transparência foi negociar uma leniência com a SBM. Trabalhou sempre próximo à AGU e foi possível acomodar. Com algum tempo, foi possível convencer o TCU e o procurador da república em primeira instância no Rio de Janeiro. Assinaram. Aí a câmara de recursos do MP desautorizou o colega de primeira instância e até hoje está sem o acordo.

O procurador-geral é o topo da hierarquia, mas uma vez esta quebrada, ele não tem como institucionalizar conduta. Foi assim que surgiu, no lugar da presunção da inocência, a certeza prévia da culpa. Na PF é a mesma coisa. O TCU dita ou condiciona políticas públicas. Um quadro técnico, corporativo, decide. Nenhum deles foi eleito, nenhum tem mandato conferido pelo povo, eles estão se conferindo mandato. São instituições fortíssimas com grande credibilidade na opinião pública, mas não têm mandato.

Para se corrigir tal distorção, não é podando, elas não podem ser podadas, é reconstituindo a credibilidade do Legislativo e do Executivo. O problema não está nas três instituições, o problema está no Legislativo e no Executivo. É aqui a necessidade de sonhar com as eleições de outubro permitirem reerguer Legislativo e Executivo. Esse que é o novo Estado constitucional. Temos que recolocar o sistema no trilho.

Isso não é, necessariamente, reforma constitucional. Nenhuma será razoável ou passível de ser aprovada se os dois Poderes não recuperarem seu prestígio, seu lugar no debate. Ausentes os dois, o Poder Judiciário,que não tem referência de mandato popular, tende a ser corporativo, e aí cria uma coligação informal com esses três, ocupando espaço que é do Executivo e do Legislativo.

Torquato está apontando problemas reais a quem sair eleito dessa eleição. Se a renovação for a que está esperada de no máximo 40%, nada do que ele falou vai acontecer. O único partido despersonalizado e capilarizado é o MDB. Os outros todos, exceção um pouco do PT, não são capilarizados, todos têm uma figura caudilhesca.

É uma diferença muito grande dos anos 60 para cá. Quando se examinava um partido político, não era uma pessoa ou duas, era uma meia dúzia. Você tinha partidos, lideranças fortes. Hoje você tem um fulano. O Bolsonaro carrega o partido, a Marina carrega outro. O Flávio Rocha um outro. Você não tem estruturas capilarizadas. Este é outro requisito fundamental da democracia representativa.

O diagnóstico e receitas, todos nós temos. Mas Torquato quer ver “quem vai colocar o avental e queimar a mão no fogão”. Vai para a rua, vai falar aqui e no exterior, mas ele não é e nunca foi um político operacional.

Com o crescimento de Bolsonaro e maior desenvoltura política dos militares, começou-se a temer uma aventura por antigos caminhos, indesejados na democracia. O comandante do Exército chamou os candidatos para uma conversa.

Nos anos 50, 60 e nos anos que seguiram, os militares foram os operacionais, mas os civis não foram menos importantes. Você vê a plêiade de civis que trabalharam no regime militar. É preciso temperar isso um pouco.

Depois, a presença deles, em termos de votos, é muito menos expressiva do que no passado porque a sociedade brasileira não é a mesma do passado. Mais de 80% da população brasileira é urbana, mais de um terço do eleitorado tem menos de 40 anos, nasceu no regime militar e não tem simpatia por militares.

Os militares, de seu lado, pensam completamente diferente, venho de uma família de militares e vivi isso. Muitos generais das antigas não querem o Bolsonaro por uma razão, porque ele é capitão. Não querem bater continência para ele.

Torquato, no entanto, diz: “Não é próprio o [general] Villas Bôas chamar candidato para fazer sabatina, isso não tem cabimento, não tem explicação”.

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