Shakespeare e a Economia ou Economia e Teatro

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Busco ensinar Economia utilizando-me do Cinema como um instrumento instrutivo. É possível fazer isso com outras formas de Arte. Talvez a mais óbvia seja a Literatura. Gustavo Franco e Henry Farnam abordam outro tema multidisciplinar – Economia e Teatro – de diferentes formas. São métodos didáticos complementares, baseados em Artea representação e transmissão da habilidade de tomar decisões práticas em determinados contextos econômicos –, que revelam uma nova e interessante maneira de ensinar e/ou aprender Economia.

Shakespeare e a Economia (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora; 2009) reúne, em um só volume, dois ensaios complementares – escritos em épocas distintas (1931 e 2009) – que surpreendem ao mostrar como as finanças e os aspectos econômicos e empresariais estavam presentes na obra e na vida do dramaturgo inglês William Shakespeare.

Em A Economia de Shakespeare, Gustavo Franco fala sobre a economia do teatro, da linguagem e das companhias teatrais, sua organização e seus resultados financeiros. Mostra como Shakespeare conquistou uma fortuna considerável – cerca de 1500 libras na época, o que hoje equivaleria, em uma estimativa hipotética, a 14 milhões de libras. “O fato é que metade ou mesmo 10% disso são suficientes para que se tenha clareza de que Shakespeare morreu rico… enriqueceu como ator, autor e principalmente como empresário de um dos ramos especialmente dinâmicos da economia elisabetana, o entretenimento de massa.”

A Economia em Shakespeare, de Henry Farnam, discorre sobre a economia no interior das peças – na voz de diversos personagens, nas metáforas ou alegorias, e nas referências a comércio, profissões, agricultura, tributação ou distribuição de riqueza. O leitor encontrará nesse ensaio pioneiro de 1931 um interessante painel sobre o surgimento do capitalismo.

Gustavo H.B. Franco (1956- ) é professor do Departamento de Economia da PUC-Rio e sócio da Rio Bravo Investimentos. Foi diretor e presidente do Banco Central do Brasil (1993-99), e um dos criadores do Plano Real. É responsável pela organização dos livros A economia em Machado de Assis; A economia em Pessoa; e O homem que roubou Portugal, lançados pela Zahar.

Henry Walcott Farnam (1853-1933), economista americano, lecionou Economia Política na Universidade Yale, em New Haven, durante muitos anos. Filho do magnata de ferrovias Henry Farnam, foi presidente da prestigiosa Associação Americana de Economia.

Não surpreende, na verdade, que, por trás de boa parte da poesia e de muitas situações dramáticas, escondido em muitas figuras de discurso, espreite um pensamento que classificamos como econômico, no sentido de que tem a ver com a produção, a troca, a distribuição ou o consumo de riqueza. Todos autores sensíveis para a realidade, em qualquer lugar e tempo, antes mesmo do nascimento oficioso da Economia Política no século XVIII do Iluminismo, discursaram sobre a economia, pois esta – o conjunto de atividades para obtenção dos meios de sobrevivência do ser humano no Planeta Terra – existiu desde que esse ser natural surgiu e se reproduziu. As atividades econômicas surgem antes do pensamento sistemático a respeito, assim como a consciência existia antes da sistematização da Ciência da Mente, a Psicologia.

Em Shakespeare, o pensamento econômico raramente está na superfície. Ele funde-se com a ação, as imagens, as emoções das peças. Ele é encontrado sob três formas.

Em primeiro lugar, várias tramas possuem um contexto econômico, ou a própria ação adquire um significado econômico, ou envolve uma situação econômica, um problema econômico, um abuso econômico. O tema principal pode ser uma história de amor. No entanto, como tantas histórias de amor na vida real, as condições econômicas podem desempenhar um papel importante na sua realização ou frustração, determinando se a trama acabará em comédia ou tragédia.

Em segundo lugar, o material econômico é oculto em descrições casuais, em metáforas ou alegorias, ou mesmo em invectivas (série de palavras injuriosas e violentas contra alguém ou algo), tiradas do comércio, das profissões, da agricultura, da tributação e da distribuição da riqueza. Essas referencias incidentais, que acontecem de forma fortuita e/ou imprevisível, acidental, eventual, episódica, refletem o que Shakespeare e seus contemporâneos pensavam sobre tudo isso e podem ser agrupadas de acordo como o enredo econômico genérico que seguem. A maior parte do que Faram chama de Economia em Shakespeare deriva dessa fonte.

Por fim, há alguns casos em que encontramos uma espécie de “antecipação” de aplicações de alguma futura Teoria Econômica. Isso ocorre especialmente em relação a questões como juros e distribuição de riqueza. Raciocínios no plano mais abstrato são generalizáveis, ou seja, puderam ser realizados de forma assistemática em qualquer tempo e lugar.

Shakespeare raramente nós dá um retrato das condições econômicas de seu tempo ou faz reflexões morais sobre seus problemas econômicos. Praticamente tudo de interesse econômico é incidental em relação a outra coisa. Ele, aliás como não poderia deixar de ser na passagem do século XVI para o XVII, tinha pouca consciência de que oferecia algum material econômico valioso para o futuro economista, nem de que em algum momento existiria um economista para estudá-lo…

Uso, frequentemente, o filme O Mercador de Veneza, estrelado por Al Pacino e baseado na peça teatral de Shakespeare, no meu curso de Economia Monetária. Ela trata do sacrifício de si mesmo pela amizade ou afeto, no caso, homossexual. A fim de dar a Bassânio os meios de levar adiante uma corte amorosa, Antônio assume uma obrigação financeira que quase lhe custa a vida.

Contudo, o que Shakespeare representa é mais que uma situação econômica. Um elemento importante da peça teatral é o antagonismo resultante do choque entre as concepções religiosas do juro: a judaica e a cristã medieval. Essa divergência estava na base dos sentimentos hostis entre judeus e cristãos pré-Renascimento.

Logo de início, Shakespeare resume a questão com seu costumeiro poder de síntese, sugerindo os argumentos contra e os a favor da cobrança de juro por empréstimo. Os escolásticos medievais condenavam a cobrança devido à proibição, no Velho Testamento, de que um judeu cobrasse juro de um “irmão”, isto é, na leitura judaica, outro judeu. Na cristã, todos os homens são “filhos de Deus”, portanto, irmãos.

Outro argumento cristão medieval era que “o ouro não produz ouro”. É roubo tomar em troca de um empréstimo de dinheiro aquilo que não é produzido pelo dinheiro, mas sim por um esforço de outrem.

Supostamente, isso não justificaria a usura. Para o cristão, “prata ou ouro não são carneiros que procriam”. Para o judeu, ele sabe que “faz o dinheiro procriar como os carneiros”…

Obviamente, os economistas modernos estranham essa doutrina aristotélica da esterilidade do dinheiro. O dinheiro quando contrata o trabalhador livre transforma-se em capital que se reproduz de maneira acumulada com a extração da mais-valia. A cobrança de juro pelo empréstimo equivale ao custo de oportunidade do possuidor-credor não extrair esse valor agregado a partir de seu dinheiro e o transferir a outro, o devedor.

Em consequência desse debate, Shylock, o judeu, se oferece ironicamente para emprestar dinheiro sem juros, como fosse para “um amigo”. Não compartilha do lucro dele, mas deseja um garantia contra o risco de perda de seu capital: o colateral exigido é cortar uma libra de carne do peito de Antônio, caso ele deixe de pagar o empréstimo prontamente. É a forma de ajustar contas com os cínicos cristãos que o humilhavam, cotidianamente, porém recorriam a seus empréstimos quando necessitavam como eles fossem “irmãos” ou mesmo “amigos”. Evidentemente, ele achava apropriado cobrar juro dos “não-irmãos”.

Antônio confiava na antecipação secular da Teoria da Diversificação de Riscos – no caso, geográficos, aliás, como imaginavam os investidores que louvavam a recente globalização no final do século XX. Ele enviou três navios para mercantilizar em destinos distintos. Não supunha a possibilidade de “crise sistêmica e/ou risco não diversificável”: por coincidência ele perdeu os três navios em acidentes diversos! E ele não era “grande demais para não falir”…

Toda essa cadeia de acontecimentos culmina na cena do julgamento da cobrança da garantia oferecida por Antônio para Shylock. Disfarçada de juiz, a noiva de Bassânio, Porcia, engana a corte, julgando com o máximo rigor, baseada em leis existentes. Dá interpretação literal à necessidade do cumprimento do contrato por parte de Antônio, porém exige que a libra de carne seja extraída sem a ameaça de desperdiçar sequer uma gota de sangue cristão. Como isso ocorreria, o contrato seria uma trama contra a vida de um cidadão veneziano, punível pela lei criminal da cidade-Estado. Para fugir da punição, Shylock tem que ser converter em cristão e pagar multa com toda sua fortuna. É a maior des-graça ter emprestado o dinheiro de graça!

Henry Walcott Farnam conclui que “O Mercador de Veneza envolve mais que visões antagônicas da usura. A peça também abrange uma discussão sobre versões extremadas do laissez-faire na economia. Shylock diz: ‘Parcimônia é benção se não for roubada’. Em outras palavras, ele defende a Teoria de Governo do guarda-noturno: qualquer trapaça esperta ganha a benção divina, ou seja, é moralmente correta, desde que não viole a lei criminal”.

Des-graça é deixar de ser agraciado pelo deus-dinheiro…

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