Outubro de 1917 por Sergei Eisenstein

RosenstoneRobert A. Rosenstone, autor do livro A História nos Filmes, Os Filmes na História (São Paulo; Paz e Terra; 2010), dedicou seu quarto capítulo à análise de Drama Inovador. Ele focaliza o filme Outubro, apresentado em 1927 por Sergei Eisenstein, considerado o maior inovador entre os diretores de filmes históricos.

“Seus primeiros filmes, que tinham o claro objetivo de fornecer mitos fundadores para o nascente Estado soviético, ignoram totalmente a contribuição dos indivíduos e, em seu lugar, trazem as massas para história e levam a história para as massas. Isso vale para sua obra mais conhecida, O Encouraçado Potemkin, bem como para sua homenagem à Revolução Bolchevique, Outubro” (p. 82).

Ambas filmagens costumam ser rotuladas de “obras de propaganda”, mas são bem mais do que isso: são também uma obra histórica que pode ocupar seu lugar ao lado das interpretações escritas do mesmo tópico. Um filme histórico ao mesmo tempo estabelece uma relação e acrescenta algo ao discurso histórico do qual nasce e ao qual necessariamente se refere.

Outubro se tornou, e continua a ser, um dos relatos mais conhecidos e duradouros de outubro de 1917, mês em que os bolcheviques depuseram o Governo Provisório da Rússia, tomaram o controle de Petrogrado e começaram a construir a ordem socialista. Classificá-lo como “obra de propaganda” é um julgamento preconceituoso, devido a nossa tradição intelectual de que a História são palavras em uma página e não imagens em uma tela.

No entanto, adverte Rosenstone, “mais de um século após a invenção do Cinema, parece estar na hora de admitir que boa parte do que aprendemos sobre o passado é transmitida ao público por meio dessa mídia visual” (p. 83).

As entrelinhas das críticas sugerem que o filme não é uma mídia adequada para nos falar do passado. Eisenstein teria dito em resposta: “Sou um cineasta, uma pessoa que nunca pode esquecer as exigências da mídia com a qual trabalha”.

Só é possível criar todos aqueles momentos que desapareceram com as ferramentas e a arte de seu ofício. Ao posicionar a câmara, escolher a luz, pedir a um ator para que faça um certo gesto, o cineasta está sempre criando fatos e significados sobre o passado. Os fatos nunca podem falar por si mesmos. Os cineastas-historiadores tem de falar por eles!

Os historiadores também são pessoas que falam pelos fatos. Os filmes são enganadores porque mostram uma história visual que parece contar os fatos, diretamente, sem mediação. O que se vê na tela é o mundo imaginado do passado, não é A Verdade.

“Com filmes e história, temos de ser contraintuitivos para entender que, por mais realista que pareça, o filme dramático nunca pode ser um reflexo, mas tem que ser, como uma obra escrita, uma construção do passado” (p. 87).

Eisenstein logo percebeu a diferença entre um livro e um filme. Sabia que o cineasta devia criar a história da sua própria maneira. Seu tema principal nunca é articulado diretamente, mas ele o coloca em cada imagem, em cada movimento, em cada ângulo de câmera e em cada corte. Seu argumento é que:

  1. a Revolução de Outubro foi o resultado das condições de guerra e do massacre de manifestantes, em 1905, e também durante o Governo Provisório, após a abdicação do czar Nicolau II;
  2. foi um grande momento dramático do qual participaram, espontaneamente, massas de gente comum.

Sim, a tomada final do poder foi planejada por um pequeno grupo de líderes bolcheviques, tendo Lênin com a mente por trás da revolução. Mas o filme, em seu argumento geral, contesta a noção de qualquer linha partidária de que os bolcheviques eram a vanguarda revolucionária, pois Eisenstein mostra a Revolução de Outubro de 1917 como o momento em que as massas entraram para a história e a história foi levada para as massas. Ele, diferentemente do cinema norte-americano, vai além do micronível da imagem individual, a história mostrada através da jornada do herói.

A tela não é uma boa mídia para transmitir os dados concisos que enchem os livros de história. Adotar o modelo da história escrita para a história em filme é olhar para o lugar errado. Já que temos (e lemos) os livros, os filmes são uma outra forma, uma maneira diferente, de olhar e representar o mundo.

A história nos filmes não passa de:

  1. uma evocação do passado; e
  2. um comentário sobre o tópico evocado.

É uma tentativa de representar e dar significado ao passado em um filme dramático. Resumindo, Outubro é uma tentativa de:

  1. transmitir a importância dos acontecimentos sociais e políticos em Petrogrado no outono de 1917;
  2. alegar que a Revolução de Outubro foi um momento no qual os bolcheviques incorporaram o espírito das massas russas que derrubaram o czar em fevereiro e ficaram desiludidas com o Governo Provisório nos meses seguintes;
  3. afirmar que os bolcheviques não fizeram mais do que liderar o povo russo pelo caminho que ele queria seguir.

O significado do filme reside em algum lugar entre o estreito território que separa História e Poesia segundo a definição aristotélica (ler “Poética” de Aristóteles: Para Avaliar Roteiros de Filmes). Para apresentar seu argumento, Outubro não nos conta:

  1. nem o que aconteceu (História Positiva),
  2. nem o que poderia ter acontecido (História Normativa).

Em vez disso, apresenta uma mistura habilidosa das duas coisas – uma mistura que (não sendo totalmente diferente da história escrita) cria uma expressão simbólica ou metafórica do que chamamos de Revolução Bolchevique.

A despeito de o quanto a história escrita dependa dos fatos para respaldar seus argumentos, o seu significado também reside em suas expressões simbólicas mais amplas. A forma e o impulso geral da história, que escrevemos, são prefigurados pelos valores do historiador e pelas exigências da forma narrativa. Dizem que “a história fatual é uma só, mas cada historiador a conta de maneira distinta”…

Eisenstein prefigura a sua história da Revolução de Outubro como um conto dramático e heroico, depois acha (e cria) as imagens apropriadas para contá-lo. Ele também sabe que a sua verdade não é referencial, mas metafórica.

John Reed, cujo livro foi inspirador do roteiro do filme Reds, também escreve um dispositivo dramático e não histórico-factual. O mesmo acontece com todos os outros historiadores que escreveram a respeito, cada um à sua maneira. Todos, em seus prefácios, apresentam os argumentos que lhes permitem olhar para o mesmo material e achar significados muito diferentes.

Por mais verdadeiros que sejam os dados que cada um nos apresenta, a moldagem desses dados não é, em última instância, literal, mas metafórico e moral. Depois de todos os fatos, o que nos sobra são os argumentos. Ou a visão ideológica. Não nos restam os detalhes, mas as avaliações amplas do significado daqueles detalhes.

  • Para a esquerda, a revolução é um “farol para a humanidade”.
  • Para a direita, é uma tragédia horrenda perpetrada por uma minoria sem lei.
  • Para Eisenstein, a tomada do poder pelos bolcheviques não era nem “inevitável” (a visão oficial soviética da era do stalinismo) nem foi um golpe de Estado (a visão conservadora típica da mentalidade antissoviética da Guerra Fria): foi uma ratificação do desejo do povo que eles haviam ajudado a moldar.

Ele relaciona seu filme a sua experiência pessoal e seu sistema de valores mais do que com a pesquisa e a precisão dos detalhes individuais. Os historiadores, exceto John Reed, apontam para o drama daqueles dias em vez de nos envolver nele. Nenhum tem o impacto emocional e a empolgação de Outubro, que nos envolve, nos atira para dentro da Revolução de Outubro como período de movimento humano, ação, esperança, luta, tensão, humor, triunfo, derrota e mudança.

Como qualquer filme, Outubro se permite o tipo de emoção histórica que as nossas formas escritas geralmente evitam. Isso se deve em parte à mídia e em parte à tradição: como acadêmicos, precisamos ser comedidos, distantes, objetivos, isentos – mesmo se quisermos retratar a Revolução de Outubro como um drama que abalou o mundo, uma tragédia, uma necessidade, o enredo de um ano na vida do Partido ou trinta anos na vida de uma Nação.

“Aceitar Outubro como história significa aceitar a emoção como parte da leitura da História. Significa aceitar também a ideia de que o metafórico é melhor do que o literal como maneira de julgar o trabalho do historiador. Está na hora de nos dispormos a avaliar as formas e as metáforas, bem como o conteúdo, que o historiador produz. Ao fazer isso, poderemos agregar os melhores filmes históricos, como Outubro, à nossa historiografia” (p. 107).

Leia mais:

A história nos filmes, os filmes na história

Revolução no Cinema: O Encouraçado Potemkin

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