A Virada: O Nascimento do Mundo Moderno

A Virada

Amantes de livros, cultores da bibliomania, querem ler um livro excepcional? Leiam o Vencedor do National Book Award 2011 e do Prêmio Pulitzer 2012: A Virada: O Nascimento do Mundo Moderno. Não só pelo conteúdo, como também pelo estilo magnífico do autor, pleno de sutilezas irônicas, é leitura fascinante.

É uma ode aos livros. Ode entre os antigos gregos é um poema lírico destinado ao canto, composto de estrofes de versos com medida igual, sempre de tom alegre e entusiástico. Essa expressão cai bem para caracterizar a tarefa dos “caçadores de livros” do pré-Renascimento em busca do conhecimento acumulado na Antiguidade. Cristãos autocríticos se transformam por causa desse resgate da cultura pagã (politeísta ou ateia) dos filósofos gregos e romanos, que tinha sido dizimada pela intolerância religiosa, durante a “Era das Trevas”, o milênio entre o século IV e o Século XV.

Mesmo nessa época mais dark, mosteiros em lugares quase inacessíveis, através de seus monges copistas, preservaram algumas obras primas em suas bibliotecas. Com isso, possibilitaram o Renascimento, ou melhor, o Nascimento do Mundo Moderno!

Stephen Greenblatt, nasceu em Boston – Estados Unidos, em 1943. Formado na Universidade Yale e pós-graduado em Cambridge, é um dos principais estudiosos dos escritos de Shakespeare. Publicou Como Shakespeare se tornou Shakespeare (http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/12874.pdf). Além de autor de livros premiados sobre literatura, é também historiador, e escreve principalmente sobre o período do Renascimento. É professor de Harvard e um dos acadêmicos mais respeitados do mundo.

Ele construiu nesse livro uma obra historiográfica inovadora. Narrou a história da descoberta de um manuscrito – Da Natureza (século I a.C.) de Lucrécio (encontra-se na Coleção Os Pensadores) –, retirado de mil anos de esquecimento, que mudou o curso do pensamento humano e tornou possível o mundo tal como o conhecemos hoje. Junto com esse fio narrativo, contou a história dos livros e das mudanças culturais e religiosas desde a Antiguidade.

Segundo o poeta da época do Império Romano, Lucrécio, tudo o que existe é fruto de algo que ele chama de virada: um pequeno desvio dos átomos que tira as coisas de sua trajetória natural para criar o novo. Em uma colisão aleatória de diferentes moléculas, surge a vida. Com uma mutação genética espontânea, cria-se uma nova espécie. Inspirado no atomismo de Epicuro, o filósofo da sabedoria de viver com prazer, inspira a Teoria da Aleatoriedade, aquela que permite entender o caos da história humana: o eterno movimento criação-destruição-reconstrução.

Caso esses pontos de inflexão fossem visíveis e determináveis, certamente um deles remontaria a janeiro de 1417, quando o caçador de livros Poggio Bracciolini resgatou das prateleiras de uma biblioteca monástica a obra-prima de Lucrécio, o poema Da natureza, até então dado como perdido. Era um belo poema contendo as ideias mais perigosas:

  1. o universo funciona sem o auxílio dos deuses,
  2. o medo religioso destrói a vida humana,
  3. prazer e virtude não são opostos, mas sim estão interligados.

Bracciolini, porém, não tinha como adivinhar a reviravolta que estava por vir. Típico homem de seu tempo, era secretário de um papa corrupto e testemunha de excomunhões arbitrárias e execuções sumárias de hereges na fogueira. Seu fascínio pelos textos antigos parecia antes estilístico que ideológico. Este livro conta sua história e mostra como sua descoberta deu origem ao que hoje chamamos de Modernidade.

Ele sabia como os livros que buscava tinham sido produzidos. Sabia que o quer que esperasse ainda achar, em 1417, só existia por causa de séculos de compromisso oficial e de longo e laborioso esforço humano. A Regra Beneditina exigia trabalhos manuais, além de orações e leituras, e sempre se considerou que esse trabalho podia incluir a escrita.

A maioria das cópias de manuscritos no mundo antigo tinha sido feita por escravos educados. Portanto, a tarefa humilhante, além de tediosa, era uma combinação perfeita para o projeto ascético de disciplinar o espírito. “Quem não lavrar a terra com o arado há de escrever o pergaminho com os dedos”. O contrário dessa regra monástica também era verdadeiro: quem não sabia escrever pergaminhos com os dedos era mandado para o arado…

Aqueles que escreviam bem – com uma caligrafia fina e clara, que os outros monges conseguissem ler com facilidade, e com uma precisão absoluta na transcrição – eram valorizados. Tanto que na tabela de pagamentos de reparação por assassinato a perda de um escriba equivalia à perda de um bispo ou de um abade!

O preço alto, em tempo em que a vida valia pouco, sugere tanto a importância como a dificuldade da obtenção dos livros de que os mosteiros precisavam para poder aplicar a regra de leitura. Mesmo as bibliotecas monásticas mais celebradas da Idade Média eram minúsculas em comparação com as da Antiguidade ou com as que existiam em Bagdá ou no Cairo.

Houve, então, o estabelecimento das chamadas scriptoria, oficinas onde os monges eram treinados para passar longas horas fazendo cópias. Superada a etapa de local improvisado no frio claustro, salas especiais foram construídas com esse propósito. Eram grandes ambientes equipados com janelas de vidro claro sob as quais os monges, até trinta deles, sentavam-se diante de mesas individuais, às vezes separadas umas das outras por divisórias.

O bibliotecário do mosteiro era responsável por conseguir todo o equipamento necessário para a cópia dos manuscritos: penas, tinta, facas, réguas, sovelas (para fazer minúsculos furos e pautar as linhas com mais regularidade, penas de meta de ponta financeiro para traçar as linhas, leitoris que sustentavam o livro que estava sendo copiado, pesos para impedir que as páginas virassem. O bibliotecário podia, se quisesse, tornar a vida de um escriba uma desgraça ou, pelo contrário, entregar ferramentas especialmente boas para um favorito.

A palavra “volume” vem de volumen, termo latino para algo que foi rolado ou enrolado. Rolos de papiro – a raiz de onde tiramos nossa palavra “papel” – eram produzidos a partir de juncos altos que cresciam na região pantanosa do delta do Nilo, no Baixo Egito. Os juncos eram colhidos e seus caules abertos e fatiados em tiras bem finas. As tiras eram dispostas uma ao lado de outra, com alguns pontos de contato. Outra camada era colocada sobre aquela, em ângulos retos. Então, a folha era delicadamente batida com uma marreta. A seiva natural que era liberada permitia que as fibras aderissem perfeitamente uma às outras. Cada folha era então colada nos rolos. (A primeira folha, em que ficariam registrados os conteúdos do rolo, era chamada de protokolon em grego, ou literalmente, “a primeira colada” – origem de nossa palavra “protocolo”.)

A maioria dos livros do mundo antigo tinha a forma de rolos, mas no século IV os cristãos tinham optado por um formato diferente, o códex, do qual derivam os livros que conhecemos. O códex tem a imensa vantagem de propiciar ao leitor uma facilidade muito maior para se localizar na leitura: o texto pode ser convenientemente paginado e indexado. As páginas podem ser viradas com rapidez até se chegar ao ponto desejado.

Foi só com a invenção do computador pessoal, com suas funções superiores de busca, que se supera o formato simples do códex. Só agora é que voltamos a falar de “rolar” um texto de ebook em tablets

Como o papiro do Rio Nilo não estava mais disponível e o papel só foi se tornar artigo de uso comum no século XIV, por mais de mil anos o principal material usado para a escrita de livros era feito de couro de animais – vacas, ovelhas, cabras e ocasionalmente cervos. Essas superfícies tinham de ser alisadas inclusive com pedras-pomes para raspar os pelos restantes. O pergaminho mais fino, aquele que facilitava a vida dos escribas, era feito de couro de vitelo e chamado de velino. E o melhor de todos era o velino uterino, produzido a partir do couro de vitelos abortados, e reservado para os livros mais preciosos, ocasionalmente acomodados em capas incrustradas de gemas verdadeiras.

Bons escribas eram liberados de certas horas de oração comunidade, para maximizar as horas de luz diurna no scriptorium. Não trabalhavam à noite: por causa de um justificável medo do fogo, todas as velas eram proibidas. Mas, em cerca de seis horas por dia, em absoluto silêncio, a vida deles era exclusivamente dedicadas às cópias.

O interesse dos escribas por livros que copiavam era absolutamente irrelevante. Na verdade, sendo a cópia uma forma de disciplina – um exercício de humildade e um ato espontâneo de aceitação da dor –, não gostar ou simplesmente não compreender os livros podia ser preferível a um envolvimento pessoal. Era necessária a total subordinação do escriba monástico ao texto ipsis littereis: o apagamento, em nome da aniquilação do espírito do monge, de seu intelecto e de sua sensibilidade. Um leitor envolvido corria o risco de alterar o texto para fazê-lo ganhar mais sentido. Tais alterações, ao longo dos séculos, inevitavelmente levariam a corrupções do original em grande escala.

É claro que havia um certo número de abades e bibliotecários monásticos que estimavam não só o pergaminho mas também as obras pagãs que neles estavam escritas. Acreditavam que podiam folhear seus tesouros sem se contaminar. Ledo engano. Mas à medida que se criava uma substanciosa literatura cristã, foi ficando menos fácil acessar os clássicos gregos e latinos. Entre o século VI e meados do século VIII, eles praticamente deixaram de ser copiados, devido a um ataque pio contra as ideias pagãs.

A melhor maneira de evitar que os livros fossem comidos por traças até sumirem era simplesmente usá-los e, quando enfim se gastassem, fazer mais cópias. Embora se saiba que o comércio de livros no mundo antigo fosse totalmente ligado à cópia, sobraram poucas informações sobre a organização dessa atividade.

Sabe-se um pouco mais sobre o mundo livreiro romano, onde foi se criando uma distinção entre os copistas (librarii) e os escribas (scriabe). Os librarii normalmente eram escravos ou trabalhadores assalariados que trabalhavam para os livreiros. Os scribae eram cidadãos livres: trabalhavam como arquivistas, burocratas do governo e secretários pessoais. Romanos ricos empregavam (ou tinham como escravos) bibliotecários e escriturários profissionais que copiavam livros emprestados das bibliotecas de seus amigos.

Os autores não ganhavam dinheiro com a venda dos livros. Seus lucros provinham do rico mecenas a quem a obra era dedicada.

No século XV, a invenção dos tipos móveis mudou exponencialmente a escala de produção, mas o livro no mundo antigo não era uma mercadoria rara. Um escravo bem treinado, lendo um manuscrito em voz alta para uma sala cheia de escribas bem treinados podia produzir pilhas de textos. Com o passar dos séculos, dezenas de milhares de livros, centenas de milhares de cópias, foram produzidos e vendidos.

O que será? O que será nos futuros séculos?

Em homenagem aos copistas modernos, os escribas da internet, os blogueiros que serão fontes dos futuros historiadores, leia: História Digital

Leia maisBiblioteca Digital

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4 thoughts on “A Virada: O Nascimento do Mundo Moderno

  1. Prezado Fernando,

    essa pergunta o que será nos próximos séculos? É algo inimaginável, nos próximos 5 anos teremos à nossa disposição uma IA (inteligência artificial), capaz de responder qualquer pergunta cujas pesquisas e conhecimento atual estejam disponíveis e possam ser acessados.

    Hoje o conhecimento mundial circula pelas veias da internet, são fluxos da ordem do exabyte viajando na velocidade da luz, transportando informações que se transformam em conhecimento instantaneamente quando precisamos extrair dados úteis.

    Os primeiros livros digitais surgiram em 1971, principalmente com o projeto Gutemberg, vide Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_digital

    Os livros serão todos virtuais nos próximos anos e teremos acesso a todo o acervo mundial, pois as pessoas irão disponibiliza-los tão logo algum livro seja comprado por alguém, será instantaneamente compartilhado em redes sociais, será limpo pelos decodificadores (extração das proteções digitais), republicado sem a proteção para que todos do planeta possam ter acesso instantâneo e imediato ao seu conteúdo. É assim que funciona hoje e funcionará melhor ainda no futuro.

    Após 2020 teremos nossa própria IA nos auxiliando o tempo todo. Mergulharemos em uma realidade virtual completa e nossos neurônios serão alimentados e acelerados com o conhecimento cada vez mais preciso, objetivo, acessível, maleável.

    Poderemos fazer upload e download diretamente de/para nosso cérebro de todo o conhecimento que desejarmos. Não haverá limites para o aumento de conhecimento e poderemos acelerar nosso QI e nossa inteligência no mesmo ritmo da Inteligência Artificial.

    O futuro do ser humano será uma digitalização completa bit a bit, ou melhor, partícula a partícula… 🙂

    Abs.

    • Prezado Reinaldo,
      se eu fosse crente, diria: “Deus te ouça!”
      Mas se eu fosse “temente de Deus”, acharia que ele é onisciente e, contraditoriamente, onipotente.
      Assim, ele não necessitaria te consultar a respeito do futuro, pois ele já sabe o que virá.
      Sabendo, ele não poderá alterar o rumo das coisas. Sendo assim, deixaria de ser onipotente…

      A respeito da barreira dos “direitos autorais”, você viu o documentário “O Menino da Internet: A História de Aaron Swartz”?

      Abs.

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