Comparação entre o Desenvolvimento do Brasil e o dos Estados Unidos no Século XIX

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O Capítulo XVIII do livro clássico com “a interpretação do Brasil” realizada por Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, parte da evidência das dificuldades criadas indiretamente, ou agravadas, pelas limitações impostas ao governo brasileiro nos acordos comerciais com a Inglaterra firmados entre 1810 e 1827. Entretanto, Furtado afirma não ter fundamento a crítica corrente que se faz a esses acordos, segundo a qual eles impossibilitaram a industrialização do Brasil nessa etapa, retirando das mãos do governo o instrumento do protecionismo.

Observando atentamente o que ocorreu na época, comprova-se que a economia brasileira atravessou uma fase de fortes desequilíbrios. Foram determinados principalmente:

  1. pela baixa relativa dos preços das exportações e
  2. pela tentativa do governo, cujas responsabilidades se havia avolumado com a independência política, conquistada em 1822, de aumentar sua participação no dispêndio nacional.

A exclusão do entreposto português, as maiores facilidades de transporte e comercialização, devidas ao estabelecimento de inúmeras firmas inglesas no país, provocaram uma baixa relativa dos preços das importações e um rápido crescimento da procura de artigos importados. Criou-se, assim, uma forte pressão sobre o balanço de pagamentos, que teria de repercutir na taxa de câmbio.

A forma como se financiou o déficit do governo central veio reforçar enormemente essa pressão sobre a taxa de câmbio. Na ausência de uma corrente substancial de capitais estrangeiros ou de uma expansão adequada das exportações, a pressão teve de resolver-se em depreciação externa da moeda, o que provocou, por sua vez, um forte aumento relativo dos preços dos produtos importados.

Se se houvesse adotado, desde o começo, uma tarifa geral de 50% ad valorem, possivelmente o efeito protecionista não tivesse sido tão grande como resultou ser com a desvalorização da moeda. Admitindo-se que um aumento de 100% no preço das mercadorias importadas seja acompanhado de um de 33% no nível geral de preços, o efeito resultante pelo menos é idêntico ao da introdução de uma tarifa aduaneira de 50% ad valorem.

A suposição de que estaria ao alcance do Brasil, na hipótese de total liberdade da Nação, adotar uma política idêntica dos Estados Unidos, nessa primeira fase do século XIX, não resiste a uma análise detida dos fatos. Esse problema encerra particular interesse e pode sintetizar-se em uma pergunta que muitos homens de pensamento se têm feito no Brasil: por que se industrializaram os EUA no século XIX, emparelhando-se com as nações europeias, enquanto o Brasil evoluía no sentido de transformar-se no século XX em uma vasta região subdesenvolvida?

Superado o fatalismo supersticioso das teorias de inferioridades de clima e “raça”, essa pergunta adquiriu uma significação mais real do ponto de vista econômico. Convém, portanto, que Furtado lhe dedique alguma atenção.

O desenvolvimento dos EUA, em fins do século XVIII e primeira metade do XIX, constitui um capítulo integrante do desenvolvimento da própria economia europeia, sendo em muito menor grau o resultado de medidas internas protecionistas adotadas por essa nação americana. O protecionismo surgiu nos EUA, como sistema geral de política econômica, em etapa já bem avançada do século XIX, quando as bases de sua economia já se haviam consolidado.

Pela primeira tarifa norte-americana de 1789, os tecidos de algodão pagavam tão-somente 5% ad valorem, e a média para todas as mercadorias era 8,5%. Vários ajustamentos permitiram que a tarifa para tecidos de algodão alcançasse 17,5%, em 1808, época em que a indústria têxtil norte-americana já se podia considerar consolidada.

Para compreender o desenvolvimento dos Estados Unidos, no período imediato à independência, é necessário ter em conta as peculiaridades dessa colônia conforme Furtado indica nos capítulos V e VI do livro Formação Econômica do Brasil. A época de sua independência, a população norte-americana era mais ou menos da magnitude da do Brasil. As diferenças sociais, entretanto, eram profundas, pois enquanto no Brasil a classe dominante era o grupo dos grandes agricultores escravistas, nos Estados Unidos, uma classe de pequenos agricultores e um grupo de grandes comerciantes urbanos dominavam o país.

Nada é mais ilustrativo dessa diferença do que a disparidade que existe entre os dois principais intérpretes dos ideais das classes dominantes nos dois países: Alexander Hamilton e o Visconde de Cairu. Ambos são discípulos de Adam Smith, cujas ideias absorveram diretamente e na mesma época na Inglaterra. Sem embargo, enquanto Hamilton se transforma em paladino da industrialização, mal compreendida pela classe de pequenos agricultores norte-americanos, advoga e promove uma decidida ação estatal de caráter positivo – estímulos diretos às indústrias e não apenas medidas passivas de caráter protecionista –, Cairu crê supersticiosamente na mão invisível e repete: deixai fazer, deixai passar, deixai vender.

As medidas restritivas com respeito à produção manufatureira que a Inglaterra impunha às suas colônias, na época mercantilista, tiveram de ser aplicadas de forma muito especial nos EUA, pelo simples fato de que o sistema de agricultura de exportação não dera resultado nas colônias do Norte. A relação dessas colônias com a Metrópole evoluíra em um sentido distinto conforme Furtado indica nos capítulos referidos.

As linhas gerais da política inglesa passaram a ser as seguintes:

  1. fomentar nas colônias do norte aquelas indústrias que não competissem com as da Metrópole, permitindo a esta reduzir suas importações de outros países;
  2. não permitir que a produção manufatureira das mesmas nos demais setores concorresse com as indústrias da Metrópole em outros mercados coloniais.

As medidas coercitivas começam a surgir quando as colônias do Norte chegam a concorrer com a Metrópole nas exportações de manufaturas.

No caso especial do aço, houve preocupação de dificultar sua produção na colônia, mas em compensação se fomentou a produção do ferro, para permitir à Inglaterra reduzir sua dependência dos países do Báltico. Não é sem razão, portanto, que um dos estudiosos mais criteriosos desta matéria pôde afirmar que, “ao estudar esses tempos, a presunção torna-se melhor definida com cada novo detalhe de fato revelado de que nível o desenvolvimento industrial das colônias estaria em outro patamar, caso suas políticas econômicas tivessem sido governadas por seu próprio povo”.

As próprias colônias, que se defrontam com dificuldades para efetuar as importações de manufaturas de que necessitavam, desde cedo criaram consciência da conveniência de fomentar a produção interna. Já em 1655, Massachusetts passou uma lei obrigando todas as famílias a produzir os tecidos de que necessitassem. Muitas colônias proibiam a exportação de certas matérias-primas, como couros, para que fossem manufaturadas localmente. Por último, cabe referir o extraordinário avanço da indústria da construção naval, a qual desempenharia um papel fundamental no desenvolvimento ocorrido na época das guerras napoleônicas. Já antes da independência, 75% do comércio norte-americano se realizavam em seus próprios barcos.

A Guerra de Independência (1775–1783), cortando por vários anos todo suprimento de manufaturas inglesas, criou um forte estímulo à produção interna, que já dispunha de base para expandir-se. Logo em seguida teve início a etapa de grandes transtornos políticos na Europa (Guerras Napoleônicas entre 1792 e 1815), os quais criaram estímulos extraordinários para o desenvolvimento da economia norte-americana.

Durante muitos anos, os EUA foram a única potência neutra que dispunha de uma grande frota mercante. Com as dificuldades de abastecimento europeu, as Antilhas inglesas e francesas voltam-se para o mercado norte-americano de alimentos. Para que se tenha ideia dessa prosperidade, basta ter em conta que de 1789 a 1810 a frota mercante norte-americana cresceu de 202 mil para 1.425.000 toneladas, e que todos esses barcos eram construídos no país.

A experiência técnica acumulada desde a época colonial, a lucidez de alguns de seus dirigentes que perceberam o verdadeiro sentido do desenvolvimento econômico que se operava com a Revolução Industrial, e a grande acumulação de capitais da fase das guerras napoleônicas não seriam, entretanto, suficientes para explicar as transformações desse país na primeira metade do século XIX.

Por muito tempo ainda a economia norte-americana dependerá, para desenvolver-se, da exportação de produtos primários. Com efeito, foi como exportadores de uma matéria-prima – o algodão – que os EUA tomaram posição na vanguarda da Revolução Industrial, praticamente desde os primórdios desta.

A Revolução Industrial, no último quartel do século XVIII e primeira metade do século XIX, consistiu basicamente em profunda transformação da indústria têxtil. É esse um fenômeno fácil de explicar se se tem em conta que os tecidos constituem a principal mercadoria “elaborada” nas sociedades pré-capitalistas. O mercado de tecidos já estava feito, ao passo que o mercado de grande número de outras manufaturas existia apenas em forma embrionária.

A primeira fase da Revolução Industrial apresenta, na verdade, duas características básicas:

  1. a mecanização dos processos manufatureiros da indústria têxtil e
  2. a substituição nessa indústria da lã pelo algodão, matéria-prima cuja produção se podia expandir mais facilmente.

Se à Inglaterra coube a tarefa de introduzir os processos de mecanização, foram os Estados Unidos que se incumbiram da segunda: fornecer as quantidades imensas de algodão que permitiriam, em alguns decênios, transformar a fisionomia da oferta de tecidos em todo o mundo. Com efeito, entre 1780 e a metade do século XIX, o consumo anual de algodão pelas fábricas inglesas aumentou de 2.000 toneladas para cerca de 250 mil.

Essa enorme expansão do consumo dê tecidos de algodão não refletia um crescimento autônomo da demanda. Foi na verdade conseguido, nessa primeira etapa, principalmente através de uma intensa concorrência às manufaturas locais de base artesanal e através da redução relativa do consumo de outras fibras. O instrumento principal dessa concorrência foi a baixa nos preços: entre o último decênio do século XVIII e a metade do século XIX os preços das manufaturas inglesas de algodão se reduziram em 2/3. Ora, essa redução foi, em grande parte, um reflexo da baixa do preço do algodão, possível graças a um concurso de circunstâncias que favoreceram a produção em grande escala desse artigo nos Estados Unidos.

O algodão, que chegou a representar mais da metade do valor das exportações dos EUA, constitui o principal fator dinâmico do desenvolvimento da economia norte-americana na primeira metade do século XIX. O seu cultivo permitiu a incorporação de abundantes terras férteis em Alabama, Mississipi, Louisiana, Arkansas e Flórida, as quais eram utilizadas em forma mais ou menos idêntica ao que ocorreria no Brasil com o café.

As formas extensivas de cultura obrigavam a buscar sempre novas terras e a penetrar no interior do continente. E foi principalmente como reflexo desse sistema, em expansão no Sul, que se povoou o meio-oeste norte-americano, abrindo-se espaço para as grandes correntes de colonização europeia, as quais penetravam no centro do continente, subindo os grandes rios que as ligavam com os mercados do sul.

À semelhança do que ocorreu ao Brasil ao se abrirem os portos, o balanço comercial dos EUA com a Inglaterra era via de regra deficitária nos primeiros decênios do século XIX. Contudo, esse déficit, em vez de pesar sobre o câmbio, como foi o caso no Brasil, e provocar um reajustamento em níveis mais baixos de intercâmbio, tendia a transformar-se em dívidas de médio e longo prazos, invertendo-se em bônus dos governos central e estaduais.

Formou-se, assim quase automaticamente, uma corrente de capitais que seria de importância fundamental para o desenvolvimento do país. Isto foi possível graças à política financeira do Estado, concebida por Hamilton, e à ação pioneira do governo central, primeiro, e estaduais, depois, na construção de uma infraestrutura econômica e no fomento direto de atividades básicas.

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